lenÚo na cabeÚa, fixo por um anel feito de pele de camelo. CalÚou as sandÂlias novas, e desceu sem fazer qualquer ruÎdo. A cidade ainda dormia. Ele fez um sanduÎche de gergelim, e bebeu ch quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando sozinho o narguilÊ. Fumou em silËncio, sem pensar em nada, escutando apenas o ruÎdo sempre constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que acabou de f'umar, enfiou a mÇo num dos bolsos do traje, e ficou alguns instantes contemplando o que havia retirado l de dentro. Havia um grande maÚo de dinheiro. O suficiente para comprar cento e vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licenÚa de comÊrcio entre seu paÎs e o paÎs onde estava. Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois entÇo foram juntos tomar mais chÂ. ­ Vou embora hoje ­ disse o rapaz. ­ Tenho dinheiro para comprar minhas ovelhas. VocË tem dinheiro para ir Á Meca. O velho nÇo disse nada. ­ PeÚo sua bËnÚÇo ­ insistiu o rapaz. ­ VocË me ajudou. O velho continuou a preparar o ch em silËncio. Depois de um certo tempo, porÊm, virou-se para o rapaz. ­ Tenho orgulho de vocË ­ disse. ­ VocË trouxe alma para a minha loja de cristais. Mas sabe que eu nÇo vou Á Meca. Como sabe que nÇo voltar a comprar ovelhas. ­ Quem lhe disse isto? ­ perguntou o rapaz, assustado. ­ Maktub ­ disse simplesmente o velho Mercador de Cristais. E o abenÚoou. O rapaz foi atÊ seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trËs sacolas cheias. Quando j estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava mais dele. L dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras rolaram pelo chÇo. O Urim e o Tumim. O rapaz entÇo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber h quanto tempo nÇo pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para nÇo voltar de cabeÚa baixa para a Espanha. "Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os sinais". O rapaz pegou o Urim e o Tumim no chÇo, e teve novamente aquela estranha sensaÚÇo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano, e os sinais indicavam que agora era o momento de partir. "Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as ovelhas nÇo me ensinaram a falar Ârabe". As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir. Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. T×nger j nÇo era mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo. "Quando vocË deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa realizÂ-la", havia falado o velho rei. Mas o velho rei nÇo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas que conhecem os seus sonhos mas nÇo desejam realizÂ-los. O velho rei nÇo havia falado que as Pir×mides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que possuÎa, deve-se comprar este rebanho. O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros fregueses andavam pela loja, tomando ch em vasos de cristal. Era um bom movimento para aquela hora da manhÇ. Do lugar onde estava, notou pela primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei. Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em T×nger, quando nÇo tinha para onde ir nem o que comer; tambÊm aquele sorriso lembrava o velho rei. "Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E cada pessoa nÇo tivesse j conhecido este rei em algum momento de suas existËncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive sua Lenda Pessoal". Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. NÇo queria chorar porque as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha vontade de conquistar o mundo. "Mas estou indo para os campos que j conheÚo, conduzir de novo as ovelhas". E nÇo estava mais contente com sua decisÇo. Tinha trabalhado um ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo sua import×ncia. Talvez porque nÇo fosse seu sonho. "Quem sabe Ê melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir Á Meca, e viver da vontade de conhecË-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas mÇos, e estas pedras lhe traziam a forÚa e a vontade do velho rei. Por uma coincidËncia ­ ou um sinal, pensou o rapaz ­ ele chegou ao bar onde havia entrado no primeiro dia. NÇo havia mais o ladrÇo, e o dono lhe trouxe uma xÎcara de chÂ. "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas sÇo. Mas talvez nÇo tenha outra oportunidade de chegar atÊ as Pir×mides do Egito. O velho tinha um peitoral de ouro, e sabia minha histÕria. Era um rei de verdade, um rei sÂbio". Estava apenas a duas horas de barco das planÎcies de Andaluzia, mas havia um deserto inteiro entre ele as Pir×mides. O rapaz percebeu talvez esta maneira de pensar a mesma situaÚÇo: na verdade, ele estava duas horas mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas, tivesse demorado quase um ano inteiro. "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu j conheÚo as ovelhas; nÇo dÇo muito trabalho, e podem ser amadas. NÇo sei se o deserto pode ser amado, mas Ê o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu nÇo conseguir encontrÂ-lo, poderei sempre voltar para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho todo o tempo que preciso; por que nÇo?" Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho repetido e encontrado um rei. NÇo acontecia com qualquer pessoa. Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mÇos; por causa daquelas duas pedras, estava de volta ao caminho de seu tesouro. "Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho rei. NÇo custava nada ir atÊ o armazÊm, saber se as Pir×mides eram de fato muito longe. O InglËs estava sentado numa construÚÇo cheirando a animais, suor, e poeira. NÇo podia chamar aquilo de armazÊm; era apenas um curral. "Toda a minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto folheava distraÎdo uma revista de quÎmica. "Dez anos de estudo me conduzem a um curral". Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem ßnica que o Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por religiÈes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia perfeitamente as diversas religiÈes, mas ainda nÇo era um Alquimista. Tinha conseguido decifrar coisas importantes, Ê verdade. Mas suas pesquisas chegaram a um ponto onde nÇo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vÇo entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas estranhas, que sÕ pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda. Quem sabe, nÇo haviam descoberto o segredo da Grande Obra ­ chamada de Pedra Filosofal ­ e por isso se fechavam no silËncio. J havia gasto parte da fortuna que seu pai lhe deixara, buscando inutilmente a Pedra Filosofal. Tinha freqØentado as melhores bibliotecas do mundo, e comprado os livros mais importantes e mais raros sobre alquimia. Num deles descobriu que h muitos anos atrÂs, um famoso alquimista Ârabe havia visitado a Europa. Diziam que ele tinha mais de duzentos anos, que havia descoberto a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O InglËs ficou impressionado com a histÕria. Mas tudo nÇo teria passado de mais uma lenda, se um amigo seu ­ voltando de uma expediÚÇo arqueolÕgica no deserto ­ nÇo lhe tivesse contado sobre um Ârabe que tinha poderes excepcionais. ­ Mora no oÂsis de Al-Fayoum ­ disse seu amigo. ­ E as pessoas contam que tem duzentos anos, e que Ê capaz de transformar qualquer metal em ouro. O InglËs nÇo coube em si de tanta excitaÚÇo. Imediatamente cancelou todos os seus compromissos, juntou os livros mais importantes, e agora estava ali, naquele armazÊm parecido com um curral, enquanto l fora uma imensa caravana se preparava para cruzar o Saara. A caravana passava por Al-Fayoum. "Tenho que conhecer este maldito Alquimista", pensou o InglËs. E o cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerÂvel. Um jovem Ârabe, tambÊm carregado de malas, entrou no lugar onde o InglËs estava e o cumprimentou. ­ Aonde vocË vai? ­ perguntou o jovem Ârabe. ­ Para o deserto ­ respondeu o InglËs, e voltou para a sua leitura. NÇo queria conversar agora. Precisava recordar tudo que havia aprendido em dez anos, pois o Alquimista deveria submetË-lo a alguma espÊcie de prova. O jovem Ârabe tirou um livro e comeÚou a ler. O livro estava escrito em espanhol. "Ainda bem", pensou o InglËs. Sabia falar espanhol melhor que Ârabe, e se este rapaz fosse atÊ Al-Fayoum, ia ter alguÊm para conversar quando nÇo estivesse ocupado com coisas importantes. "Que coisa engraÚada" ­ pensou o rapaz enquanto tentava mais uma vez ler a cena do enterro que iniciava o livro. ­ "Faz quase dois anos que comecei a ler, e nÇo consigo passar destas pÂginas". Mesmo sem um rei para interrompË-lo, ele nÇo conseguia se concentrar. Ainda estava em dßvida quanto Á sua decisÇo. Mas estava percebendo uma coisa importante: as decisÈes eram apenas o comeÚo de alguma coisa. Quando alguÊm tomava uma decisÇo, na verdade estava mergulhando numa correnteza poderosa, que levava a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir. "Quando resolvi ir em busca do meu tesouro, nunca imaginei trabalhar numa loja de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocÎnio. "Da mesma maneira, esta caravana pode ser uma decisÇo minha, mas seu percurso ser sempre um mistÊrio". Na sua frente havia um europeu tambÊm lendo um livro. O europeu era antipÂtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atÊ ter se tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa. O rapaz fechou o livro. NÇo queria fazer nada que o deixasse parecido com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e comeÚou a brincar com eles. O estrangeiro deu um grito: ­ Um Urim e um Tumim! O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso. ­ NÇo estÇo Á venda ­ disse. ­ NÇo valem muito ­ disse o InglËs. ­ SÇo cristais de rocha, nada mais. H milhÈes de cristais de rocha na terra, mas para quem entende, estes sÇo Urim e Tumim. NÇo sabia que eles existiam nesta parte do mundo. ­ Foi o presente de um rei ­ disse o rapaz. O estrangeiro ficou mudo. Depois enfiou a mÇo no bolso e retirou, tremendo, duas pedras iguais. ­ VocË falou em um rei ­ disse. ­ E vocË nÇo acredita que os reis conversem com pastores ­ disse o rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa. ­ Ao contrÂrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei que o resto do mundo recusou-se a conhecer. Por isso Ê muito provÂvel que os reis conversem com pastores. E completou, com medo que o rapaz nÇo estivesse entendendo: ­ Est na BÎblia. No mesmo livro que me ensinou a fazer este Urim e este Tumim. Estas pedras eram a ßnica forma de adivinhaÚÇo permitida por Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro. O rapaz ficou contente de estar naquele armazÊm. ­ Talvez isto seja um sinal ­ disse o InglËs, como quem pensa alto. ­ Quem lhe falou em sinais? ­ o interesse do rapaz crescia a cada momento. ­ Tudo na vida sÇo sinais ­ disse o InglËs, desta vez fechando a revista que estava lendo. O Universo Ê feito por uma lÎngua que todo mundo entende, mas que j se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal, alÊm de outras coisas. "Por isso estou aqui. Porque tenho que encontrar um homem que conhece esta Linguagem Universal. Um Alquimista." A conversa foi interrompida pelo chefe do armazÊm. ­ VocËs estÇo com sorte ­ disse o Ârabe gordo. ­ Sai hoje Á tarde uma caravana para Al-Fayoum. ­ Mas eu vou ao Egito ­ disse o rapaz. ­ Al-Fayoum Ê no Egito ­ disse o dono. ­ Que tipo de Ârabe vocË Ê? O rapaz disse que era espanhol. O InglËs ficou satisfeito: mesmo vestido como Ârabe, o rapaz pelo menos era europeu. ­ Ele chama de "sorte" os sinais ­ disse o InglËs, depois que o gordo Ârabe saiu. ­ Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopÊdia sobre as palavras "sorte" e "coincidËncia". ê com estas palavras que se escreve a Linguagem Universal. Depois comentou com o rapaz que nÇo havia sido "coincidËncia" encontrÂ-lo com o Urim e o Tumim na mÇo. Perguntou se ele tambÊm estava indo em busca do Alquimista. ­ Estou indo em busca de um tesouro ­ disse o rapaz, e arrependeu-se imediatamente. Mas o InglËs pareceu nÇo dar import×ncia. ­ De certa forma, eu tambÊm estou, disse. ­ E nem sei o que quer dizer Alquimia ­ completou o rapaz, quando o dono do armazÊm comeÚou a chamÂ-los para fora. ­ Eu sou o LÎder da Caravana ­ disse um senhor de barba longa e olhos escuros. ­ Tenho poder de vida e de morte sobre cada pessoa que carrego. Porque o deserto Ê uma mulher caprichosa, e Ás vezes deixa os homens loucos. Haviam quase duzentas pessoas, e o dobro de animais. Eram camelos, cavalos, burros, aves. O InglËs tinha vÂrias malas, cheias de livros. Haviam mulheres, crianÚas, e vÂrios homens com espadas na cintura e longas espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o LÎder teve que repetir vÂrias vezes suas palavras para que todos entendessem. ­ H vÂrios homens e deuses diferentes no coraÚÇo destes homens. Mas meu ßnico Deus Ê Allah, e por ele eu juro que farei o possÎvel e o melhor para vencer mais uma vez o deserto. Agora quero que cada um de vocËs jure pelo Deus em que acredita, no fundo do seu coraÚÇo, de que ir me obedecer em qualquer circunst×ncia. No deserto, a desobediËncia significa a morte. Um murmßrio correu baixo por todas as pessoas. Estavam jurando em voz baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou por Jesus Cristo. O InglËs ficou em silËncio. O murmßrio se estendeu um tempo maior do que uma simples jura; as pessoas tambÊm estavam pedindo proteÚÇo aos cÊus. Ouviu-se um longo toque de clarim, e cada um montou em seu animal. O rapaz e o InglËs haviam comprado camelos, e subiram com uma certa dificuldade. O rapaz ficou com pena do camelo do InglËs: estava carregado com as pesadas sacolas de livros. ­ NÇo existem coincidËncias ­ disse o InglËs, tentando continuar a conversa que haviam iniciado no armazÊm. ­ Foi um amigo que me trouxe atÊ aqui, porque conhecia um Ârabe, que... Mas a caravana comeÚou a andar, e ficou impossÎvel escutar o que o InglËs estava dizendo. Entretanto, o rapaz sabia exatamente do que se tratava: a cadeia misteriosa que vai unindo uma coisa com a outra, que o tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da âfrica, e encontrar na praÚa um rei, e ser roubado para conhecer um mercador de cristais, e... "Quanto mais se chega perto do sonho, mais a Lenda Pessoal vai se tornando a verdadeira razÇo de viver", pensou o rapaz. A caravana comeÚou a seguir em direÚÇo ao poente. Viajavam de manhÇ, paravam quando o sol ficava mais forte, e seguiam de novo ao entardecer. O rapaz conversava pouco com o InglËs, que passava a maior parte do tempo entretido pelos livros. EntÇo, passou a observar em silËncio a marcha de animais e homens pelo deserto. Agora tudo era muito diferente do dia em que haviam partido: naquele dia, confusÇo e gritos, choros e crianÚas e relinchar de animais, se misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes. No deserto, porÊm, havia apenas o vento eterno, o silËncio, e o casco dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si. "J cruzei muitas vezes estas areias" ­ disse um cameleiro certa noite. "Mas o deserto Ê tÇo grande, os horizontes ficam tÇo longe, que fazem a gente se sentir pequeno e permanecer em silËncio". O rapaz entendeu o que o cameleiro queria dizer, mesmo sem ter pisado antes num deserto. Todas as vezes que olhava o mar ou o fogo, era capaz de ficar horas em silËncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensidÇo e na forÚa dos elementos. "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambÊm aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sÂbio". O vento nÇo parava nunca. O rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse roÚando de leve pela lÇ de suas ovelhas, que seguiam em busca de alimento e Âgua pelos campos de Andaluzia. "NÇo sÇo mais minhas ovelhas", disse para si mesmo, sem sentir saudades. "Devem ter se acostumado a um novo pastor, e j me esqueceram. Isto Ê bom. Quem est acostumado a viajar, como as ovelhas, sabe que Ê sempre necessÂrio partir um dia". Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve certeza de que ela j havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com um pastor que tambÊm soubesse ler e contasse histÕrias extraordinÂrias; afinal, ele nÇo devia ser o ßnico. Mas ficou impressionado com o seu pressentimento: talvez ele estivesse aprendendo tambÊm esta histÕria de Linguagem Universal, que sabe o passado e o presente de todos os homens. "Pressentimentos", como sua mÇe costumava dizer. O rapaz comeÚou a entender que os pressentimentos eram os rÂpidos mergulhos que a alma dava nesta corrente Universal de vida, onde a histÕria de todos os homens est ligada entre si, e podemos saber tudo, porque tudo est escrito. "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais. O deserto era Ás vezes feito de areia, e Ás vezes feito de pedra. Se a caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam diante de um rochedo, davam uma longa volta. Se a areia era fina demais para o casco dos camelos, procuravam um lugar onde a areia fosse mais resistente. ás vezes o chÇo estava coberto de sal, no lugar onde um lago devia haver existido. Os animais entÇo se queixavam, e os cameleiros desciam e desatolavam os animais. Depois colocavam as cargas nas prÕprias costas, passavam pelo chÇo traiÚoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia ficava doente ou morria, os cameleiros lanÚavam a sorte e escolhiam um novo guia. Mas tudo isto acontecia por uma ßnica razÇo: nÇo importava quantas voltas tivesse que dar, a caravana seguia sempre em direÚÇo a um mesmo ponto. Depois de vencidos os obstÂculos, ela voltava de novo sua frente para o astro que indicava a posiÚÇo do oÂsis. Quando as pessoas viam aquele astro brilhando no cÊu pela manhÇ, sabiam que ele indicava um lugar com mulheres, Âgua, t×maras e palmeiras. SÕ o InglËs nÇo percebia aquilo: estava a maior parte do tempo imerso na leitura dos seus livros. O rapaz tambÊm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias de viagem. Mas achava muito mais interessante olhar a caravana e escutar o vento. Assim que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se afeiÚoar a ele, jogou o livro fora. Era um peso desnecessÂrio, apesar do rapaz haver criado a superstiÚÇo de que toda vez que abria o livro, encontrava alguÊm importante. Terminou fazendo amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas aventuras como pastor ao cameleiro. Numa destas conversas o cameleiro comeÚou a falar de sua vida. ­ Eu morava num lugar perto de El Cairum ­ contou. ­ Tinha minha horta, meus filhos e uma vida que nÇo ia mudar atÊ o dia de minha morte. Num ano em que a colheita foi melhor, seguimos todos para Meca, e eu cumpri a ßnica obrigaÚÇo que estava faltando na minha vida. Podia morrer em paz, e gostava disto. "Certo dia a terra comeÚou a tremer, e o Nilo subiu alÊm do seu limite. Aquilo que eu pensava que sÕ acontecia com os outros, terminou acontecendo comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundaÚÇo; minha mulher teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas Âguas. E eu tive pavor de ver destruÎdo tudo que havia conquistado. "Mas nÇo houve jeito. A terra ficou imprestÂvel e tive que arranjar outro meio de vida. Hoje sou cameleiro. Mas aÎ entendi a palavra de Allah: ninguÊm sente medo do desconhecido, porque qualquer pessoa Ê capaz de conquistar tudo que quer e necessita. "SÕ sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou nossas plantaÚÈes. Mas este medo passa quando entendemos que nossa histÕria e a histÕria do mundo foram escritas pela mesma MÇo". ás vezes as caravanas se encontravam durante a noite. Sempre uma delas tinha o que a outra estava precisando ­ como se realmente tudo fosse escrito por uma sÕ MÇo. Os cameleiros trocavam informaÚÈes sobre as tempestades de vento, e se reuniam em torno das fogueiras, contando as histÕrias do deserto. Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuÚados; eram beduÎnos que espionavam a rota seguida pelas caravanas. Davam notÎcias de assaltantes e tribos bÂrbaras. Chegavam no silËncio e partiam no silËncio, com as roupas negras deixando apenas os olhos de fora. Numa destas noites o cameleiro veio atÊ a fogueira onde o rapaz e o InglËs estavam sentados. ­ H rumores de guerra entre os clÇs ­ disse o cameleiro. Os trËs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que ninguÊm tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a linguagem sem palavras, a Linguagem Universal. Depois de certo tempo, o InglËs perguntou se havia perigo. ­ Quem entra no deserto nÇo pode voltar ­ disse o cameleiro. ­ Quando nÇo se pode voltar, sÕ devemos ficar preocupado com a melhor maneira de seguir em frente. O resto Ê por conta de Allah, inclusive o perigo. E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub". ­ VocË precisa prestar mais atenÚÇo Ás caravanas ­ disse o rapaz ao InglËs, depois que o cameleiro saiu. ­ Elas dÇo muitas voltas, mas rumam sempre para o mesmo lugar. ­ E vocË devia ler mais sobre o mundo ­ respondeu o InglËs. ­ Os livros sÇo iguais Ás caravanas. O imenso grupo de homens e animais comeÚou a andar mais rÂpido. AlÊm do silËncio durante o dia, as noites ­ quando as pessoas costumavam se reunir para conversar em torno das fogueiras ­ comeÚaram a ficar tambÊm silenciosas. Certo dia o LÎder da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam mais ser acesas, para nÇo chamar a atenÚÇo sobre a caravana. Os viajantes passaram a fazer uma roda de animais, e dormiam todos juntos no centro, tentando se proteger do frio noturno. O LÎder passou a instalar sentinelas armadas em volta do grupo. Numa daquelas noites o InglËs nÇo conseguiu dormir. Chamou o rapaz e comeÚaram a passear pelas dunas em volta do acampamento. Era uma noite de lua cheia, e o rapaz contou ao InglËs toda a sua histÕria. O InglËs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois que o rapaz comeÚou a trabalhar nela. ­ Este Ê o princÎpio que move todas as coisas ­ disse. ­ Na Alquimia Ê chamado de Alma do Mundo. Quando vocË deseja algo de todo o seu coraÚÇo, vocË est mais prÕximo da Alma do Mundo. Ela Ê sempre uma forÚa positiva. Disse tambÊm que isto nÇo era apenas um dom dos homens: todas as coisas sobre a face da Terra tinham tambÊm uma alma, nÇo importando se era mineral, vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento. ­ Tudo que est sob e sobre a face da Terra se transforma sempre, porque a Terra est viva; e tem uma alma. Somos parte desta Alma, e raramente sabemos que ela sempre trabalha em nosso favor. Mas vocË deve entender que, na loja dos cristais, atÊ mesmo os vasos estavam colaborando para o seu sucesso. O rapaz ficou em silËncio por algum tempo, olhando a lua e a areia branca. ­ Tenho visto a caravana caminhando atravÊs do deserto ­ disse, por fim. ­ Ela e o deserto falam a mesma lÎngua, e por isso ele permite que ela o atravesse. Vai testar cada passo seu, para ver se est em perfeita sintonia com ele; e se estiver, ela chegar atÊ o oÂsis. "Se um de nÕs chegasse aqui com muita coragem, mas sem entender esta lÎngua, ia morrer no primeiro dia." Continuaram olhando a lua, juntos. ­ Esta Ê a magia dos sinais ­ continuou o rapaz. ­ Tenho visto como os guias lËem os sinais do deserto, e como a alma da caravana conversa com a alma do deserto. Depois de algum tempo, foi a vez do InglËs falar. ­ Preciso prestar mais atenÚÇo Á caravana ­ disse, por fim. ­ E eu preciso ler seus livros ­ falou o rapaz. Eram livros estranhos. Falavam em mercßrio, sal, dragÈes e reis, mas ele nÇo conseguia entender nada. Entretanto, havia uma idÊia que parecia repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestaÚÈes de uma coisa sÕ. Num dos livros ele descobriu que o texto mais importante da Alquimia tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda. ­ ê a TÂboa da Esmeralda ­ falou o InglËs, orgulhoso por ensinar alguma coisa ao rapaz. ­ E entÇo, para que tantos livros? ­ Para entender estas linhas ­ respondeu o InglËs, sem estar muito convencido da prÕpria resposta. O livro que mais interessou ao rapaz contava a histÕria dos alquimistas famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais nos laboratÕrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa ÿnica permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da Terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles chamavam esta descoberta de Grande Obra ­ que era composta de uma parte lÎquida e uma parte sÕlida. ­ NÇo basta observar os homens e os sinais, para se descobrir esta linguagem? ­ perguntou o rapaz. ­ VocË tem mania de simplificar tudo ­ respondeu o InglËs irritado. ­ A Alquimia Ê um trabalho sÊrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente como os mestres ensinaram. O rapaz descobriu que a parte lÎquida da Grande Obra era chamada de Elixir da Longa Vida, e curava todas as doenÚas, alÊm de evitar que o alquimista ficasse velho. E a parte sÕlida era camada de Pedra Filosofal. ­ NÇo Ê fÂcil descobrir a Pedra Filosofal ­ disse o InglËs. ­ Os alquimistas ficavam muitos anos nos laboratÕrios, olhando aquele fogo que purificava os metais. Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabeÚas iam perdendo todas as vaidades do mundo. EntÇo, um belo dia, descobriam que a purificaÚÇo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos. O rapaz se lembrou do Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha sido bom limpar seus vasos, para que ambos se libertassem tambÊm dos maus pensamentos. Estava cada vez mais convencido de que a Alquimia poderia ser aprendida na vida diÂria. ­ AlÊm disso ­ falou o InglËs ­ a Pedra Filosofal tem uma propriedade fascinante. Uma pequena lasca dela Ê capaz de transformar grandes quantidades de metal em ouro. A partir desta frase, o rapaz ficou interessadÎssimo em Alquimia. Pensava que, com um pouco de paciËncia, poderia transformar tudo em ouro. Leu a vida de vÂrias pessoas que tinham conseguido: Helvetius, Elias, Fulcanelli, Geber. Eram histÕrias fascinantes: todos estavam vivendo atÊ o fim sua Lenda Pessoal. Viajavam, encontravam sÂbios, faziam milagres na frente dos incrÊdulos, possuÎam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava completamente perdido. Eram apenas desenhos, instruÚÈes em cÕdigo, textos obscuros. ­ Por que eles falam tÇo difÎcil? ­ perguntou certa noite ao InglËs. Notou tambÊm que o InglËs andava meio aborrecido e sentindo falta de seus livros. ­ Para que sÕ os que tËm responsabilidade de entender que entendam ­ disse ele. ­ Imagine se todo mundo saÎsse transformando chumbo em ouro. Daqui a pouco o ouro nÇo ia valer nada. "SÕ os persistentes, sÕ aqueles que pesquisam muito, Ê que conseguem a Grande Obra. Por isso estou no meio deste deserto. Para encontrar um verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cÕdigos". ­ Quando foram escritos estes livros? ­ perguntou o rapaz. ­ H muitos sÊculos atrÂs. ­ Naquela Êpoca nÇo havia imprensa ­ insistiu o rapaz. NÇo havia jeito de todo mundo tomar conhecimento da Alquimia. Por que esta linguagem tÇo estranha, cheia de desenhos? O InglËs nÇo respondeu nada. Disse que h vÂrios dias estava prestando atenÚÇo Á caravana, e que nÇo conseguia descobrir nada de novo. A ßnica coisa que tinha notado era que os comentÂrios sobre a guerra aumentavam cada vez mais. Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao InglËs. ­ EntÇo, aprendeu muita coisa? ­ perguntou o outro, cheio de expectativa. Estava precisando de alguÊm com quem pudesse conversar para esquecer o medo da guerra. ­ Aprendi que o mundo tem uma Alma, e quem entender esta Alma, entender a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o Elixir. "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sÇo tÇo simples que podem ser escritas numa esmeralda". O InglËs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os sÎmbolos mÂgicos, as palavras difÎceis, os aparelhos de laboratÕrio, nada disso havia impressionado o rapaz. "Ele deve ter uma alma primitiva demais para compreender isto", apensou. Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo. ­ Volte para sua caravana ­ disse. ­ Ela tampouco me ensinou qualquer coisa. O rapaz voltou a contemplar o silËncio do deserto e a areia levantada pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo. "A maneira dele nÇo Ê a minha, e minha maneira nÇo Ê a dele. Mas ambos estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto". A caravana comeÚou a viajar dia e noite . A toda hora apareciam os mensageiros encapuÚados, e o cameleiro ­ que haviam se tornado amigo do rapaz ­ explicou que a guerra entre os clÇs havia comeÚado. Teriam muita sorte se conseguissem chegar ao oÂsis. Os animais estavam exaustos, e os homens cada vez mais silenciosos. O silËncio era mais terrÎvel na parte da noite, quando um simples relincho de camelo ­ que antes nÇo passava de um relincho de camelo ­ agora assustava a todos e podia ser um sinal de invasÇo. O cameleiro, porÊm, parecia nÇo se impressionar muito com a ameaÚa de guerra. ­ Estou vivo ­ disse ao rapaz, enquanto comia um prato de t×maras na noite sem fogueiras e sem lua. ­ Enquanto estou comendo, nÇo faÚo nada alÊm de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, ser um dia tÇo bom para morrer como qualquer outro. "Porque nÇo vivo nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o presente, e ele Ê o que me interessa. Se vocË puder permanecer sempre no presente, entÇo ser um homem feliz. Vai perceber que no deserto existe vida, que o cÊu tem estrelas, e que os guerreiros lutam porque isto faz parte da raÚa humana. A vida ser uma festa, um grande festival, porque ela Ê sempre e apenas o momento que estamos vivendo." Duas noites depois, quando se preparava para dormir, o rapaz olhou em direÚÇo ao astro que seguiam durante a noite. Achou que o horizonte estava um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas. ­ ê o oÂsis ­ disse o cameleiro. ­ E porque nÇo chegamos l imediatamente? ­ Porque precisamos dormir. O rapaz abriu os olhos quando o sol comeÚava a surgir no horizonte. Diante dele, onde as pequenas estrelas haviam estado durante a noite, estendia-se uma fila interminÂvel de tamareiras, cobrindo toda a frente do deserto. ­ Conseguimos! ­ disse o InglËs, que tambÊm tinha acabado de acordar. O rapaz, porÊm, mantinha-se calado. Aprendera o silËncio do deserto, e contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar muito para chegar atÊ as Pir×mides, e algum dia aquela manhÇ seria apenas uma lembranÚa. Mas agora ela era o momento presente, a festa da qual havia falado o cameleiro, e ele estava procurando vivË-lo com as liÚÈes do seu passado e os sonhos do seu futuro. Um dia, aquela visÇo de milhares de tamareiras seria apenas uma lembranÚa. Mas para ele, neste momento, significava sombra, Âgua, e um refßgio para a guerra. Assim como um relincho de camelo podia se transformar em perigo, uma fila de tamareiras podia significar um milagre. "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz. "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambÊm", pensou o Alquimista, enquanto via chegar centenas de pessoas e animais ao OÂsis. As pessoas gritavam atrÂs dos recÊm-chegados, a poeira encobria o sol do deserto, e as crianÚas pulavam de excitaÚÇo ao ver os estranhos. O Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do LÎder da Caravana, e conversarem longamente entre si. Mas nada daquilo interessava ao Alquimista. J havia visto muita gente chegar e partir, enquanto o OÂsis e o deserto permaneciam o mesmo. Tinha visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por causa do vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crianÚa. Mesmo assim, nÇo conseguia conter no fundo do seu coraÚÇo um pouco da alegria de vida que todo viajante experimentava quando, depois de terra amarela e cÊu azul, o verde das tamareiras aparecia diante de seus olhos. "Talvez Deus tenha criado o deserto para que o homem pudesse sorrir com as tamareiras", pensou ele. Depois resolveu concentrar-se em assuntos mais prÂticos. Sabia que naquela caravana vinha o homem a quem devia ensinar parte de seus segredos. Os sinais lhe haviam contado isto. Ainda nÇo conhecia este homem, mas seus olhos experimentados o reconheceriam quando o visse. Esperava que fosse alguÊm tÇo capaz como seu aprendiz anterior. "NÇo sei porque estas coisas tem que ser transmitidas de boca para ouvido", pensava ele. NÇo era exatamente porque as coisas eram secretas; Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas. Ele sÕ conhecia uma explicaÚÇo para este fato: as coisas tinham que ser transmitidas assim porque elas seriam feitas de Vida Pura, e este tipo de vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras. Porque as pessoas se fascinam com pinturas e palavras, e terminam se esquecendo da Linguagem do Mundo. Os recÊm-chegados foram trazidos imediatamente Á presenÚa dos chefes tribais de Al-Fayoum. O rapaz nÇo podia acreditar no que estava vendo: ao invÊs de um poÚo cercado de algumas palmeiras ­ como havia lido certa vez num livro de histÕria ­ o oÂsis era muito maior do que vÂrias aldeias da Espanha. Tinha trezentos poÚos, cinqØenta mil tamareiras, e muitas tendas coloridas espalhadas entre elas. ­ Parece as Mil e Uma Noites ­ disse o InglËs, impaciente para encontrar-se logo com o Alquimista. Foram cercados logo pelas crianÚas, que olhavam curiosas os animais, os camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam saber se tinham visto algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e pedras que os mercadores haviam trazido. O silËncio do deserto parecia um sonho distante; as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem saÎdo de um mundo espiritual, para estarem de novo entre os homens. Estavam contentes e felizes. Apesar das precauÚÈes do dia anterior, o cameleiro explicou ao rapaz que os oÂsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros, porque a maior parte dos habitantes eram mulheres e crianÚas. E haviam oÂsis tanto de um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam os oÂsis como cidades de refßgio. O LÎder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e comeÚou a dar as instruÚÈes. Iam permanecer ali atÊ que a guerra entre os clÇs tivesse terminada. Como eram visitantes, deviam compartilhar as tendas com habitantes do oÂsis, que lhes dariam seus melhores lugares. Era a hospitalidade da Lei. Depois pediu que todos, inclusive seus prÕprios sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais. ­ SÇo as regras da Guerra ­ explicou o LÎder da Caravana. Desta maneira, os oÂsis nÇo poderiam abrigar exÊrcitos ou guerreiros. Para surpresa do rapaz, o InglËs tirou de seu casaco um revÕlver cromado e entregou ao homem que recolhia as armas. ­ Para que um revÕlver? ­ perguntou. ­ Para aprender a confiar nos homens ­ respondeu o InglËs. Estava contente por haver chegado ao final de sua busca. O rapaz, porÊm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de seu sonho, mais as coisas se tornavam difÎceis. NÇo funcionava mais aquilo que o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava, sabia ele, era o teste da persistËncia e da coragem de quem busca sua Lenda Pessoal. Por isso ele nÇo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho. "Deus colocou no meu caminho", pensou o rapaz, surpreso consigo mesmo. AtÊ aquele momento considerava os sinais como uma coisa do mundo. Algo como comer ou dormir, algo como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca tinha pensado que esta era uma linguagem que Deus estava usando para mostrar-lhe o que devia fazer. "NÇo fique impaciente", repetiu o rapaz para si mesmo. "Como disse o cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar". No primeiro dia todos dormiram de cansaÚo, inclusive o InglËs. O rapaz havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de idade quase igual a sua. Eram gente do deserto, e queriam saber histÕrias das grandes cidades. O rapaz falou de sua vida como pastor, e ia comeÚar a contar sua experiËncia na loja de cristais, quando o InglËs entrou na tenda. ­ Procurei-o a manhÇ inteira ­ disse, enquanto carregava o rapaz para fora. ­ Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista. Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver de maneira diferente das outras pessoas do oÂsis, e em sua tenda era muito provÂvel que um forno estivesse sempre aceso. Andaram bastante, atÊ ficarem convencidos que o oÂsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas centenas de tendas. ­ Perdemos quase o dia inteiro ­ disse o InglËs, sentando-se com o rapaz perto de u