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     © Copyright Paulo Coelho
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     Date: 14 Aug 2003
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     Edizgo especial da pbgina www.paulocoelho.com.br , venda proibida








     J  importante dizer  alguma coisa  sobre o  fato de O Alquimista ser um
livro simbulico, diferente de O  Dibrio  de um Mago, que foi um  trabalho de
ngo-ficzgo.
     Durante  onze anos de minha vida  estudei Alquimia.  A simples idjia de
transformar metais em ouro,  ou de  descobrir o Elixir da Longa Vida, jb era
fascinante demais para passar  despercebida  a qualquer  iniciante em Magia.
Confesso que  o Elixir da Longa Vida  me seduzia  mais: antes de  entender e
sentir  a  presenza  de  Deus,  a  idjia de que  tudo ia acabar um  dia  era
desesperadora. De  maneira  que,  ao saber da  possibilidade de conseguir um
lnquido  capaz  de  prolongar  por muitos  anos  minha  existkncia,  resolvi
dedicar- me de corpo e alma a sua fabricazgo.
     Era uma  jpoca de  grandes  transformazhes sociais ­ o comezo dos  anos
setenta ­  e ngo  havia ainda  publicazhes  sjrias  a  respeito de Alquimia.
Comecei,  como um dos personagens do livro, a gastar  o  pouco dinheiro  que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do  meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trks pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente  a Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tambjm  muitas outras pessoas  que  se diziam  alquimistas,
possunam  seus laboraturios,  e prometiam  me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
     Mesmo  com  toda a  minha  dedicazgo, os  resultados eram absolutamente
nulos. Ngo acontecia  nada do que os manuais de  Alquimia  afirmavam  em sua
complicada linguagem. Era  um sem-fim de  snmbolos, de draghes, lehes, suis,
luas e mercŪrios, e eu sempre tinha a impressgo de estar no caminho  errado,
porque a linguagem simbulica permite uma gigantesca  margem de equnvocos. Em
1973,  jb  desesperado com  a  auskncia  de progresso,  cometi  uma  suprema
irresponsabilidade.  Nesta  jpoca  eu  era  contratado  pela  Secretaria  de
Educazgo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele  estado, e  resolvi
utilizar meus alunos em laboraturios teatrais que  tinham como tema  a Tbboa
da Esmeralda.  Esta  atitude, aliada  a algumas  incurshes  minhas nas breas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prupria carne a verdade do provjrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
     Passei os pruximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cjtica
com  relazgo a  tudo que dissesse  respeito a  brea  mnstica.  Neste  exnlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que  su aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da  alma, que ngo  devemos fugir de nosso
pruprio destino, e que a mgo de Deus j infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
     Em 1981, conheci  RAM e o meu  Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho  que estb trazado  para mim.  E  enquanto ele  me  treinava em  seus
ensinamentos,  voltei  a  estudar  Alquimia por  minha prupria conta.  Certa
noite, enquanto  conversbvamos depois de uma  exaustiva sessgo de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tgo vaga e tgo complicada.
     ­ Existem trks tipos  de alquimistas ­ disse meu Mestre. ­  Aqueles que
sgo vagos porque ngo sabem o que estgo falando; aqueles que sgo vagos porque
sabem  o que estgo  falando, mas sabem tambjm  que a linguagem da Alquimia j
uma linguagem dirigida ao corazgo, e ngo a razgo.


     ­ E qual o terceiro tipo? ­ perguntei.
     ­  Aqueles  que jamais ouviram  falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atravjs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
     E com isto, meu  Mestre ­ que pertencia  ao segundo tipo ­ resolveu  me
dar aulas  de  Alquimia. Descobri que a  linguagem simbulica, que  tanto  me
irritava  e  me desnorteava,  era a Ūnica maneira  de  se  atingir a Alma do
Mundo,  ou o  que  Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a  Lenda
Pessoal, e  os  Sinais de  Deus, verdades que meu raciocnnio intelectual  se
recusava a aceitar  por causa  de  sua simplicidade. Descobri que atingir  a
Grande  Obra ngo j tarefa de poucos, mas de todos os seres  humanos  sobre a
face da Terra. J claro que  nem sempre a  Grande Obra vem sob a  forma de um
ovo e de um  frasco com lnquido, mas todos nus podemos ­ sem qualquer sombra
de dŪvida ­ mergulhar na Alma do Mundo.
     Por isso, "O Alquimista" j tambjm  um  texto  simbulico. No decorrer de
suas pbginas, aljm de  transmitir tudo  o  que aprendi a  respeito,  procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway,  Blake, Borges (que tambjm utilizou  a histuria persa  para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.

     Para  completar este  extenso  prefbcio,  e  ilustrar  o que meu Mestre
queria  dizer com o terceiro tipo de  alquimistas, vale  a pena recordar uma
histuria que ele mesmo me contou no seu laboraturio.
     Nossa Senhora, com  o Menino Jesus  em seus brazos,  resolveu  descer a
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres  fizeram uma grande
fila, e  cada um  chegava diante  da  Virgem  para prestar sua homenagem. Um
declamou belos  poemas,  outro  mostrou suas  iluminuras  para a  Bnblia, um
terceiro  disse  o  nome de todos os  santos. E assim por diante, monge apus
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
     No Ūltimo lugar  da  fila,  havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sbbios textos da jpoca. Seus pais eram  pessoas
simples, que trabalhavam num velho  circo das  redondezas, e  tudo  que  lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
     Quando  chegou  sua   vez,  os  outros   padres  quiseram  encerrar  as
homenagens, porque  o antigo malabarista ngo  tinha  nada de importante para
dizer, e podia  desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no  fundo  do
seu corazgo, tambjm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
     Envergonhado,  sentindo o olhar reprovador  de seus  irmgos,  ele tirou
algumas  laranjas   do  bolso  e  comezou  a  jogb-las  para  cima,  fazendo
malabarismos, que era a Ūnica coisa que sabia fazer.
     Foi su neste instante que  o Menino Jesus  sorriu,  e comezou  a  bater
palmas no colo de Nossa  Senhora.  E foi  para ele que  a Virgem estendeu os
brazos, deixando que segurasse um pouco o menino.












     Para J.
     Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.







     Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
     chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
     Tinha ela uma irmg, chamada Maria, que sentou-se aos pjs do Senhor, e
     ficou ouvindo seus ensinamentos.
     Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos servizos.
     Entgo aproximou-se  de Jesus e disse: ­ Senhor! Ngo te importas  de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
     irmg que venha ajudar-me!
     Respondeu-lhe o Senhor:
     ­ Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
     "Maria,  entretanto,  escolheu  a  melhor  parte, e  esta ngo lhe  serb
tirada."








     O Alquimista  pegou  um livro  que algujm na  caravana havia trazido. O
volume  estava  sem capa, mas  conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas pbginas, encontrou uma histuria sobre Narciso.
     O Alquimista conhecia  a  lenda de  Narciso, um belo rapaz que todos os
dias  ia  contemplar  sua prupria beleza  num lago. Era tgo fascinado por si
mesmo  que certo  dia  caiu dentro do  lago e morreu  afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
     Mas ngo era assim que Oscar Wilde acabava a histuria.
     Ele dizia  que quando  Narciso morreu,  vieram as Orjiades  ­ deusas do
bosque  ­ e viram o lago transformado, de um lago de  bgua doce, num cvntaro
de lbgrimas salgadas.
     ­ Por que vock chora? ­ perguntaram as Orjiades.
     ­ Choro por Narciso ­ disse o lago
     ­ Ah, ngo nos espanta que vock chore por Narciso ­ continuaram  elas. ­
Afinal  de contas,  apesar de  todas  nus sempre  corrermos atrbs dele  pelo
bosque, vock era o Ūnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
     ­ Mas Narciso era belo? ­ perguntou o lago.
     ­ Quem mais do que vock poderia  saber disso? ­ responderam, surpresas,
as Orjiades.
     ­ Afinal  de contas, era em suas margens que ele se debruzava todos  os
dias.
     O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
     ­  Eu choro  por Narciso,  mas jamais  havia percebido  que Narciso era
belo.
     "Choro  por  Narciso porque,  todas  as vezes que ele  se deitava sobre
minhas margens eu podia ver,  no  fundo dos seus olhos, minha prupria beleza
refletida".

     "Que bela histuria", disse o Alquimista.





     O rapaz chamava-se Santiago. Estava comezando a escurecer quando chegou
com  seu  rebanho  diante  de  uma  velha igreja abandonada.  O  teto  tinha
despencado  hb muito tempo, e um enorme sicfmoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
     Resolveu  passar a noite ali.  Fez  com que todas as ovelhas  entrassem
pela porta em runnas, e entgo colocou  algumas tbbuas de modo  que  elas ngo
pudessem fugir  durante a noite. Ngo haviam lobos naquela regigo,  mas certa
vez  um  animal havia escapado durante  a noite, e  ele gastara  todo o  dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
     Forrou o chgo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro.  Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comezar  a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortbveis durante a noite.
     Ainda  estava  escuro  quando acordou. Olhou para  cima,  e viu que  as
estrelas brilhavam atravjs do teto semidestrundo.
     "Queria  dormir  um pouco mais",  pensou ele. Tivera  o mesmo sonho  da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
     Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comezou a
acordar as ovelhas  que ainda dormiam. Ele havia  reparado  que,  assim  que
acordava, a maior parte dos  animais  tambjm comezava  a despertar. Como  se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida  a vida daquelas  ovelhas
que hb  dois anos percorriam com ele a terra, em  busca  de bgua e alimento.
"Elas jb se acostumaram  tanto  a mim que  conhecem meus horbrios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que  podia ser  tambjm o contrbrio:
ele que havia se acostumado ao horbrio das ovelhas.
     Haviam  certas  ovelhas,  porjm,  que  demoravam  um  pouco  mais  para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada  qual pelo
seu nome. Sempre  acreditara  que as ovelhas  eram capazes de entender o que
ele  falava. Por isso  costumava as vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidgo e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as Ūltimas novidades  que  via nas cidades por onde
costumava passar.
     Nos Ūltimos  dois dias, porjm, seu assunto  tinha  sido praticamente um
su: a  menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a  quatro  dias. Tinha estado apenas uma vez lb,  no  ano  anterior. O
comerciante era dono  de uma loja  de  tecidos, e  gostava sempre de ver  as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificazhes. Um  certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou lb suas ovelhas.






     "Preciso vender alguma lg", disse para o comerciante.
     A loja do  homem estava  cheia,  e o  comerciante  pediu  que  o pastor
esperasse  atj o entardecer.  Ele sentou-se na  calzada da  loja e tirou  um
livro do alforje.
     ­  Ngo sabia que os  pastores sgo capazes de ler livros ­ disse uma voz
feminina ao seu lado.


     Era  uma moza  tnpica da regigo de Andaluzia, com  seus cabelos  negros
escorridos, e os olhos  que  lembravam  vagamente os  antigos conquistadores
mouros.
     ­ J porque as ovelhas ensinam mais  que os  livros ­ respondeu o rapaz.
Ficaram  conversando  por  mais de  duas horas.  Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era  igual ao outro. O
pastor contou dos  campos de Andaluzia, das  Ūltimas novidades  que  viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por ngo precisar conversar sempre com
as ovelhas.
     ­ Como aprendeu a ler? ­ perguntou a moza a certa altura.
     ­ Como todas as outras pessoas ­ respondeu o rapaz. ­ Na escola.
     ­ E, se sabe ler, entgo por que j apenas um pastor?
     O rapaz  deu uma desculpa  qualquer para ngo responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a moza  jamais entenderia. Continuou  a contar suas
histurias  de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se  de
espanto  e surpresa.  A medida  que o tempo foi passando, o rapaz  comezou a
desejar que aquele dia ngo acabasse nunca, que o pai da moza ficasse ocupado
por muito  tempo e o mandasse  esperar por trks dias.  Percebeu  que  estava
sentindo uma coisa  que nunca havia sentido antes:  vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
     Mas  o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois,  pagou-lhe o que era  devido, e  pediu  que voltasse no ano
seguinte.





     Agora  faltavam apenas  quatro dias para chegar de novo a mesma aldeia.
Estava excitado  e  ao mesmo  tempo  inseguro: talvez a  menina  jb  tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lg.
     ­ Ngo tem importvncia ­ disse o rapaz para as suas ovelhas. ­ Eu tambjm
conhezo outras meninas em outras cidades.
     Mas no fundo do seu corazgo,  ele  sabia  que tinha importvncia.  E que
tanto os pastores,  como  os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia algujm capaz de fazer com  que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.






     O dia comezou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direzgo
ao sol. "Elas  nunca  precisam tomar uma decisgo",  pensou ele. "Talvez  por
isso fiquem  sempre  juntos  de mim". A  Ūnica  necessidade  que as  ovelhas
sentiam era de bgua e de alimento. Enquanto o  rapaz conhecesse  os melhores
pastos  em Andaluzia,  elas seriam  sempre  suas  amigas. Mesmo que  os dias
fossem  todos iguais, com longas horas se  arrastando entre  o  nascer  e  o
pfr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um su livro  em suas  curtas
vidas, e  ngo conhecessem a lnngua  dos homens que contavam as novidades nas
aldeias.  Elas  estavam contentes  com bgua  e alimento, e isto  bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lg, sua companhia, e ­ de vez em quando ­
sua carne.
     "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
su iam  perceber  depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram  de confiar nos seus
pruprios instintos. Su porque as conduzo ao alimento e a comida".
     O rapaz comezou a estranhar seus pruprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicfmoro crescendo dentro, fosse  mal-assombrada. Tinha feito com
que  sonhasse um  mesmo  sonho pela  segunda  vez, e  estava  lhe  dando uma
sensazgo de raiva contra suas companheiras, sempre tgo fijis. Bebeu um pouco
de vinho que  havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou  contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tgo forte que ngo ia poder
     conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
vergo. O calor durava atj  a noite, e  durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando  o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do  peso,
sempre lembrava que por causa dele ngo havia sentido frio de manhg.
     "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
entgo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
     O  casaco  tinha  um motivo,  e  o  rapaz  tambjm.  Em dois anos  pelas
planncies de Andaluzia ele jb sabia  de  cor todas as  cidades  da regigo, e
esta  era a  grande razgo de sua vida;  viajar. Estava  planejando  explicar
desta vez a menina porque um  simples  pastor  sabe ler: havia estado atj os
dezesseis anos  num seminbrio.  Seus  pais queriam  que  ele fosse  padre, e
motivo de orgulho para  uma simples famnlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e bgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e  teologia.
Mas  desde  crianza  sonhava  em conhecer o  mundo,  e isto era  muito  mais
importante do que conhecer Deus ou os  pecados  dos homens.  Certa tarde, ao
visitar a famnlia, havia tomado coragem  e dito para seu  pai que ngo queria
ser padre. Queria viajar.




     ­ Homens de todo o  mundo jb passaram por esta aldeia, filho ­ disse  o
pai. ­ Vkm em busca de  coisas novas, mas continuam as  mesmas pessoas.  Vgo
atj  o morro conhecer o castelo e  acham  que  o passado  era  melhor que  o
presente.  Tkm cabelos louros ou pele escura, mas sgo iguais  aos  homens de
nossa aldeia.
     ­ Mas ngo conhezo  os castelos das terras de onde eles vkm ­ retrucou o
rapaz.
     ­ Estes  homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui ­ continuou o pai.
     ­ Quero conhecer as mulheres e as  terras de onde eles vieram ­ disse o
rapaz. ­ Porque eles nunca ficam por aqui.
     ­ Os homens  trazem a bolsa cheia de dinheiro  ­ disse mais  uma  vez o
pai. ­ Entre nus, su os pastores viajam.
     ­ Entgo serei pastor.
     O pai ngo disse mais nada.  No dia seguinte deu-lhe uma bolsa  com trks
antigas moedas de ouro espanholas.
     ­ Achei certo  dia no campo.  Iam ser da Igreja, como  seu dote. Compre
seu rebanho  e  corra  o  mundo  atj  aprender que  nosso  castelo j o  mais
importante, e nossas mulheres sgo as mais belas.
     E o abenzoou. Nos olhos do pai ele  leu  tambjm  a vontade de  correr o
mundo. Uma vontade  que  ainda vivia, apesar das dezenas de  anos que ele  a
tentou sepultar com bgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.






     O horizonte  se  tingiu  de vermelho, e depois  apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da  conversa com  o pai e sentiu-se  alegre;  tinha jb  conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual aquela  que o  esperava
em  dois dias). Tinha um  casaco, um livro  que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, j que todo dia  realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia  vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando  cansasse  do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
     "Ngo sei  como buscam Deus no seminbrio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que  possnvel, buscava  um  caminho diferente para andar.
Nunca  havia estado  naquela igreja antes, apesar de  haver  passado  tantas
vezes por ali. O mundo  era grande e inesgotbvel, e se  ele deixasse que  as
ovelhas o  guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema j que elas ngo se dgo conta  de que estgo fazendo
caminhos novos cada dia. Ngo percebem que os pastos mudaram, que as estazhes
sgo diferentes ­ porque estgo apenas ocupadas com bgua e comida."
     "Talvez seja assim com todos nus" ­ pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
ngo  penso em outras  mulheres desde que conheci a  filha  do  comerciante".
Olhou  o cju,  e pelos seus cblculos estaria antes do almozo em  Tarifa.  Lb
poderia trocar  seu  livro por  um  volume mais grosso, encher a  garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto  para  encontrar a
menina, e ngo  queria pensar  na possibilidade de  outro pastor ter  chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mgo.
     "J  justamente  a possibilidade de realizar um  sonho que torna a  vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cju e apressava o passo.
Tinha  acabado  de  se  lembrar  que  em  Tarifa  morava  uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.




     A  velha conduziu o rapaz atj um quarto no  fundo da casa,  separado da
sala  por uma cortina feita  de tiras de plbstico colorido. Lb  dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Corazgo de Jesus, e duas cadeiras.
     A velha  sentou-se  e pediu  que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mgos do rapaz e rezou baixo.
     Parecia uma reza cigana. O  rapaz  jb  havia encontrado muitos  ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto ngo cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que  a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambjm
que eles tinham pacto com demfnios, e que raptavam crianzas para servirem de
escravas em seus  misteriosos  acampamentos.  Quando  era  pequeno,  o rapaz
sempre tinha morrido  de medo  de ser raptado  pelos ciganos,  e  este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mgos.
     "Mas  existe  a  imagem  do  Sagrado  Corazgo  de Jesus",  pensou  ele,
procurando ficar mais calmo. Ngo queria que sua mgo comezasse  a tremer  e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silkncio.
     ­ Que interessante ­ disse a velha, sem tirar os olhos da mgo do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
     O rapaz estava ficando nervoso. Suas mgos comezaram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mgos rapidamente.
     ­ Ngo vim aqui para ler as mgos ­ disse, jb arrependido de  ter entrado
naquela casa. Pensou por  um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora  sem saber  de  nada. Estava  dando  importvncia demais  a  um  sonho
repetido.
     ­  Vock veio saber de  sonhos ­ respondeu a velha. ­ E os sonhos  sgo a
linguagem  de  Deus.  Quando  ele  fala  a  linguagem  do  mundo,  eu  posso
interpretar.  Mas  se  ele  falar a linguagem  de  sua alma,  su  vock  pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
     Mais  um  truque, pensou  o rapaz. Entretanto,  resolveu  arriscar.  Um
pastor  corre  sempre o risco dos  lobos  ou  da seca,  e  isto j que faz  a
profissgo de pastor mais excitante.
     ­ Tive  o mesmo sonho  duas vezes seguidas ­ disse. ­ Sonhei que estava
num  pasto  com  minhas  ovelhas  quando aparecia uma crianza, e comezava  a
brincar  com os animais. Ngo gosto que mexam  nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crianzas sempre conseguem mexer com os animais
sem que  eles se assustem. Ngo  sei porquk. Ngo sei como os  animais sabem a
idade dos seres humanos.
     ­ Volte  para  seu sonho  ­ disse  a velha. ­ Tenho uma panela no fogo.
Aljm disso vock tem pouco dinheiro e ngo pode tomar todo o meu tempo.
     ­ A crianza  continuava a  brincar com  as ovelhas  por  algum tempo  ­
continuou o rapaz, um  pouco  constrangido. ­  E de repente, me pegava pelas
mgos e me levava atj as Pirvmides do Egito.
     O  rapaz  esperou um  pouco  para ver se  a velha sabia o  que eram  as
Pirvmides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
     ­ Entgo, nas Pirvmides do  Egito, ­ ele falou as trks Ūltimas  palavras
lentamente,  para que a velha pudesse entender bem ­ a crianza me dizia: "se
vock vier atj aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.


     A velha continuou em silkncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mgos do rapaz e estudb-las atentamente.
     ­ Ngo vou lhe cobrar nada agora ­ disse a velha. Mas quero um djcimo do
tesouro, se vock encontrb-lo.
     O rapaz riu. De felicidade. Entgo iria economizar o pouco  dinheiro que
tinha, por causa de  um sonho que  falava  em  tesouros escondidos! A  velha
devia ser mesmo uma cigana ­ os ciganos sgo burros.
     ­ Entgo interprete o sonho ­ pediu o rapaz.
     ­ Antes jure. Jure que vock vai me dar a djcima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
     O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Corazgo de Jesus.
     ­ J um sonho da Linguagem do Mundo ­ disse ela. ­  Posso interpretb-lo,
e j uma interpretazgo muito difncil. Por isso acho que merezo minha parte no
seu achado.
     "E a interpretazgo  j esta:  vock deve ir  atj as Pirvmides  do  Egito.
Nunca  ouvi falar  delas, mas se  foi uma crianza  que lhe mostrou, j porque
existem. Lb vock encontrarb um tesouro que lhe farb rico".
     O  rapaz ficou surpreso, e depois irritado. Ngo precisava ter procurado
a velha para isto.
     Finalmente lembrou-se de que ngo estava pagando nada.
     ­ Para isto eu ngo precisava perder meu tempo ­ disse.
     ­ Por isso lhe falei que seu sonho era difncil. As coisas  simples  sgo
as mais extraordinbrias, e su os sbbios conseguem vk-las. Jb que ngo sou uma
sbbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mgos.
     ­ E como eu vou chegar atj o Egito?
     ­  Eu  su interpreto sonhos. Ngo  sei transformb-los em  realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dgo.
     ­ E se eu ngo chegar atj o Egito?
     ­ Eu fico sem pagamento. Ngo serb a primeira vez.
     E a velha ngo disse mais nada. Pediu para que o rapaz sansse,  pois  jb
tinha perdido muito tempo com ele.




     O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais  acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha vbrias providkncias a tomar: foi ao armazjm arranjar
alguma comida,  trocou  seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se  num
banco da praza para saborear  o  vinho novo que  havia comprado. Era um  dia
quente,  e  o vinho, por um destes mistjrios insondbveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada  da cidade, no estbbulo de
um novo amigo  seu. Conhecia muita  gente por aquelas  bandas ­  e  por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba  fazendo amigos novos, e ngo precisa
ficar com eles dia apus dia. Quando a gente vk  sempre as mesmas pessoas ­ e
isto acontecia no seminbrio ­ terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de  nossas  vidas. E como  elas fazem parte de  nossas  vidas,  passam
tambjm a querer modificar nossas vidas. Se a gente ngo for como elas esperam
ficar,  chateadas. Porque todas as pessoas tem a nozgo exata de como devemos
viver nossa vida.
     E  nunca  tkm nozgo de como devem viver  as suas pruprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que ngo sabia transformb-los em realidade.
     Resolveu  esperar  o  sol descer  um pouco,  antes  de seguir com  suas
ovelhas em  direzgo ao campo. Daqui a trks  dias  iria estar com a filha  do
comerciante.
     Comezou a  ler o livro que tinha conseguido com o padre de  Tarifa. Era
um  livro grosso,  que falava de um  enterro  logo na primeira  pbgina. Aljm
disso, o nome dos personagens eram complicadnssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um  personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores ngo tivessem que ficar decorando nomes.
     Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, ­ e era boa, porque
falava  de um  enterro na neve,  o que lhe transmitia  uma sensazgo de  frio
debaixo daquele imenso sol ­  um velho sentou-se  ao seu  lado e  comezou  a
puxar conversa.
     ­  O  que eles estgo  fazendo? ­ perguntou  o velho, apontando  para as
pessoas da praza.
     ­ Trabalhando ­ respondeu o  rapaz, secamente, e  voltou a  fingir  que
estava concentrado  na leitura.  Na verdade, estava  pensando em tosquiar as
ovelhas na frente  da filha do  comerciante, para ela  atestar como  ele era
capaz de fazer coisas interessantes. Jb havia imaginado esta cena uma porzgo
de vezes;  em todas elas, a menina ficava deslumbrada  quando ele comezava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trbs para frente. Tambjm
tentava  se lembrar  de  algumas  boas  histurias para contar a ela enquanto
tosquiava  as ovelhas.  A  maior parte ele  tinha lido nos  livros, mas iria
contar  como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenza,
porque ngo sabia ler livros.
     O  velho, entretanto,  insistiu. Falou que estava cansado, com sede,  e
pediu um gole  de vinho  ao rapaz. O  rapaz ofereceu sua  garrafa;  talvez o
velho ficasse quieto.
     Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz  estava  lendo.  Ele pensou em ser rude e mudar de banco,  mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Entgo estendeu o livro para
o  velho, por duas razhes: a primeira j que ngo sabia pronunciar o tntulo. E
a segunda era que, se o velho ngo soubesse ler, ia ele mesmo  mudar de banco
para ngo sentir-se humilhado.
     ­ Humm... ­ disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ­ J um livro importante, mas j muito chato.
     O rapaz ficou surpreso.  O velho  tambjm lia, e jb lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.


     ­ J um livro que fala  o que quase todos os livros falam ­  continuou o
velho. ­ Da incapacidade que as pessoas tkm de escolher seu pruprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.


     ­ Qual j a maior mentira do mundo? ­ indagou surpreso o rapaz.
     ­  J  esta: em  determinado  momento de  nossa  existkncia,  perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta j a
maior mentira do mundo.
     ­ Comigo ngo aconteceu isto ­  disse o rapaz. ­  Queriam  que  eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
     ­ Assim j melhor ­ disse o velho. ­ Porque vock gosta de viajar.
     "Ele adivinhou  meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava  o livro grosso, sem a  menor intenzgo de devolvk-lo. O rapaz notou
que ele  vestia  uma roupa estranha; parecia um brabe,  o  que ngo  era raro
naquela regigo. A Bfrica ficava a apenas algumas  horas da Tarifa; e  era su
cruzar  o pequeno  estreito  num  barco.  Muitas vezes  apareciam  brabes na
cidade, fazendo compras e rezando orazhes estranhas vbrias vezes por dia.
     ­ De onde j o senhor? ­ perguntou.
     ­ De muitas partes.
     ­ Ningujm pode ser de muitas partes ­ o rapaz falou. ­ Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um Ūnico lugar, de uma  cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
     ­ Entgo podemos dizer que eu nasci em Saljm.
     ­  O rapaz ngo sabia onde era  Saljm,  mas ngo quis  perguntar para ngo
sentir-  se humilhado  com  a  prupria  ignorvncia. Ficou  mais  algum tempo
olhando a praza. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
     ­ Como estb Saljm? ­ perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
     ­ Como sempre esteve.
     Ainda ngo era uma pista. Mas sabia  que Saljm ngo  estava em Andaluzia.
Sengo, ele jb a teria conhecido.
     ­ E o que vock faz em Saljm? ­ insistiu.
     ­ O que fazo  em Saljm? ­  o  velho pela  primeira vez  deu uma gostosa
gargalhada. ­ Ora, eu sou o Rei de Saljm!
     As  pessoas dizem  coisas muito estranhas, pensou o  rapaz. As vezes  j
melhor estar com as ovelhas, que  sgo caladas, e apenas  procuram alimento e
bgua. Ou j melhor estar com os livros, que contam  esturias incrnveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala  com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
     ­ Meu nome j Melquisedec ­ disse o velho. ­ Quantas ovelhas vock tem?
     ­  O  suficiente  ­ respondeu  o rapaz. O velho  estava querendo  saber
demais sobre sua vida.
     ­ Entgo estamos diante de um problema. Ngo posso ajudb-lo enquanto vock
achar que tem ovelhas suficientes.
     O  rapaz  se irritou. Ngo estava pedindo  ajuda. O  velho j  que  tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
     ­  Me devolva o  livro ­ disse. ­ Tenho que  ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.


     ­  Me dk um  djcimo de suas ovelhas ­ disse o velho. ­  E eu lhe ensino
como chegar atj o tesouro escondido.

     O rapaz  tornou entgo a lembrar-se do  sonho, e  de  repente tudo ficou
claro.  A velha  ngo tinha  cobrado  nada, mas  o velho ­ que era talvez seu
marido  ­  ia  conseguir arrancar  muito  mais  dinheiro  em  troca  de  uma
informazgo que ngo existia. O velho devia ser cigano tambjm.
     Antes que o  rapaz dissesse  qualquer coisa, porjm, o velho abaixou-se,
pegou um  graveto, e  comezou a escrever na areia  da praza. Quando  ele  se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase  cegou o rapaz.  Mas num movimento  rbpido demais para  algujm de  sua
idade, tornou a cobrir o  brilho com o  manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
     Na areia da  praza  principal da  pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mge.
     Leu  a histuria  de  sua  vida  atj aquele  momento, as brincadeiras de
infvncia, as noites frias do seminbrio. Leu o nome da filha  do comerciante,
que ngo sabia. Leu coisas que jamais contara para algujm, como o dia  em que
roubou a  arma do  seu pai para  matar veados, ou sua primeira  e  solitbria
experikncia sexual.





     "Sou o Rei de Saljm", dissera o velho.
     ­  Por  que  um  rei conversa  com  um  pastor? ­  perguntou  o  rapaz,
envergonhado e admiradnssimo.
     ­ Existem  vbrias razhes. Mas vamos dizer que  a mais importante  j que
vock tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
     O rapaz ngo sabia o que era Lenda Pessoal.
     ­  J aquilo  que vock sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comezo
da juventude, sabem qual j sua Lenda Pessoal.
     "Nesta altura da  vida,  tudo  j claro, tudo j possnvel, e elas ngo tkm
medo de sonhar  e desejar tudo aquilo que  gostariam de ver  fazer  em  suas
vidas.  Entretanto,  a medida  em  que o  tempo vai passando, uma misteriosa
forza comeza a tentar provar que j impossnvel realizar a Lenda Pessoal.
     O que o velho estava dizendo ngo fazia muito sentido para o  rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "forzas misteriosas"; a filha  do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
     ­ Sgo  as  forzas que  parecem ruins, mas na  verdade estgo ensinando a
vock como  realizar  sua Lenda Pessoal. Estgo preparando seu espnrito  e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vock  quem for
ou o que  faza, quando quer com vontade alguma  coisa, j  porque este desejo
nasceu na alma do Universo. J sua missgo na Terra.
     ­ Mesmo que  seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
     ­ Ou  buscar um tesouro. A Alma  do Mundo j alimentada pela  felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciŪme. Cumprir sua Lenda  Pessoal
j a Ūnica obrigazgo dos homens. Tudo j uma coisa su.
     "E quando vock  quer alguma coisa, todo  o Universo  conspira  para que
vock realize seu desejo".

     Durante algum tempo ficaram em silkncio, olhando a praza  e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
     ­ Por que vock cuida de ovelhas?
     ­ Porque gosto de viajar.
     Ele apontou um pipoqueiro, com  sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da praza.
     ­ Aquele  pipoqueiro tambjm  sempre desejou viajar, quando crianza. Mas
preferiu  comprar uma  carrocinha de pipoca,  juntar dinheiro durante  anos.
Quando estiver velho, vai  passar um  mks na Bfrica.  Jamais  entendeu que a
gente sempre tem condizhes para fazer o que sonha.
     ­ Devia ter escolhido ser um pastor ­ pensou em voz alta o rapaz.
     ­ Ele  pensou  nisto ­ disse  o velho. ­ Mas  os  pipoqueiros sgo  mais
importantes  que  os  pastores.  Os  pipoqueiros tkm uma casa,  enquanto  os
pastores dormem  ao  relento.  As  pessoas  preferem  casar  suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
     O  rapaz  sentiu  uma  pontada  no   corazgo,  pensando   na  filha  do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.


     ­  Enfim, o que as  pessoas  pensam sobre pipoqueiros e sobre  pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
     O  velho folheou  o  livro,  e distraiu-se lendo  uma pbgina.  O  rapaz
esperou  um  pouco,  e o interrompeu  da  mesma  maneira  como  ele  o havia
interrompido.
     ­ Por que vock fala estas coisas comigo?
     ­ Porque vock tenta viver sua Lenda Pessoal. E estb a ponto de desistir
dela.
     ­ E vock aparece sempre nestas horas?
     ­ Nem  sempre  desta forma,  mas jamais deixei  de  aparecer.  As vezes
aparezo sob a  forma de uma boa  sanda,  uma boa  idjia. Outras  vezes,  num
momento crucial, fazo as coisas ficarem mais fbceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas ngo nota isto.
     O velho contou que na semana passada ele tinha  sido forzado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir  em  busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou  num  rio,  e
tinha  quebrado  999.999  pedras em  busca  de uma esmeralda.  Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e su faltava uma pedra  ­ apenas UMA PEDRA  ­
para ele  descobrir sua esmeralda. Como ele tinha  sido  um homem  que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o  velho resolveu interferir.  Transformou-se
numa  pedra  que  rolou  sobre o pj do  garimpeiro.  Este,  com  a  raiva  e
frustrazgo  dos  cinco anos perdidos, atirou  a pedra longe. Mas  atirou com
tanta forza que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
     ­ As pessoas aprendem muito cedo sua razgo de viver ­ disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. ­  Talvez seja por isso  que elas desistem tgo
cedo tambjm. Mas assim j o mundo.
     Entgo  o rapaz se lembrou que a conversa  havia comezado com o  tesouro
escondido.
     ­  Os  tesouros  sgo  levantados da  terra pela  torrente  de  bgua,  e
enterrados  por estas mesmas  enchentes ­ disse  o  velho. ­ Se  vock quiser
saber sobre seu tesouro, terb que me ceder um djcimo de suas ovelhas.
     ­ E ngo serve um djcimo do tesouro?
     O velho ficou decepcionado.
     ­  Se vock sair prometendo  o que ainda ngo tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
     O rapaz entgo contou que tinha prometido um djcimo a cigana.
     ­ Os  ciganos sgo espertos ­ suspirou o velho. ­ De qualquer maneira  j
bom vock aprender que tudo na vida tem um prezo. J isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
     O velho devolveu o livro ao rapaz.
     ­ Amanhg, nesta mesma  hora, vock me traz um djcimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
     E sumiu numa das esquinas da praza.


     O rapaz tentou  ler o  livro,  mas  ngo  conseguiu concentrar-se  mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atj o
pipoqueiro, comprou  um saco  de pipocas, enquanto  pensava se devia  ou ngo
contar a ele o que o velho dissera. "As vezes j melhor deixar as coisas como
estgo", pensou  o  rapaz, e ficou  quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trks dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.


     Ele podia  evitar este sofrimento  ao  pipoqueiro.  Comezou a andar sem
rumo pela cidade, e  foi atj o porto. Havia um pequeno prjdio,  e no  prjdio
havia uma janelinha onde  as pessoas compravam passagens. O Egito  estava na
Bfrica.
     ­ Quer alguma coisa? ­ perguntou o sujeito no guichk.
     ­ Talvez amanhg ­  disse o rapaz se afastando. Se  vendesse  apenas uma
ovelha podia  chegar  atj o  outro lado  do  estreito.  Era uma idjia  que o
apavorava.
     ­  Mais  um  sonhador  ­  disse o sujeito do guichk  ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. ­ Ngo tem dinheiro para viajar.

     Quando estava no guichk,  o  rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto  delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grbvidas,
proteger os animais  contra  os lobos.  Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia.  Conhecia  o  prezo  justo de comprar e  vender cada  um dos seus
animais.
     Resolveu voltar atj o estbbulo de seu amigo pelo caminho  mais longo. A
cidade tambjm tinha um  castelo,  e ele resolveu subir  a rampa  de  pedra e
sentar-se numa de suas muradas.  Lb de cima ele  podia ver  a Bfrica. Algujm
certa vez havia lhe  explicado que por ali chegaram os mouros,  que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros.  Eles
j que tinham trazido os ciganos.
     De lb  podia ver tambjm quase  toda  a  cidade, inclusive a praza  onde
havia conversado com o velho.
     "Maldita  hora em  que encontrei este velho",  pensou  ele.  Tinha  ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o  velho
davam qualquer importvncia  para  o  fato de  que ele  era  um pastor.  Eram
pessoas solitbrias, que jb ngo acreditavam mais na vida, e ngo entendiam que
os pastores terminam apegados as suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma  delas: sabia qual mancava, qual iria  dar  cria daqui  a dois meses,  e
quais eram as  mais preguizosas.  Sabia  tambjm  como  tosquib-las,  e  como
matb-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
     Um vento comezou a soprar.  Ele  conhecia  aquele vento:  as pessoas  o
chamavam  de  Levante,  porque com  este vento chegaram  tambjm as hordas de
infijis. Atj  conhecer Tarifa, nunca havia pensado  que a Bfrica estava  tgo
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
     O  Levante  comezou a  soprar mais forte.  "Estou  entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado  e  alguma coisa  que gostaria de ter. Havia tambjm a filha do
comerciante, mas  ela ngo era  tgo  importante como as  ovelhas, porque  ngo
dependia dele. Talvez  sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se ngo
aparecesse  daqui  a dois dias, a menina ngo iria notar: para  ela todos  os
dias eram iguais, e quando todos  os dias ficam iguais,  j porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre  que o
sol cruza o cju.
     "Eu larguei meu  pai, minha  mge, e o castelo  da minha cidade. Eles se
acostumaram  e  eu me acostumei.  As ovelhas tambjm vgo  se acostumar  com a
minha falta", pensou o rapaz.
     De lb de cima ele olhou  a praza. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um  jovem casal sentou-se no banco onde ele havia  conversado com o
velho, e deram um longo beijo.


     "O pipoqueiro", disse para si  mesmo, sem completar  a frase. Porque  o
Levante havia comezado a soprar com mais forza, e ele ficou sentindo o vento
no  rosto. Ele  trazia os mouros,  j  verdade, mas tambjm trazia o cheiro do
deserto  e das mulheres cobertas com vju.  Trazia  o  suor e  os  sonhos dos
homens que um dia  haviam partido em  busca  do  desconhecido, de  ouro,  de
aventuras ­ e de pirvmides. O rapaz comezou a invejar a liberdade do  vento,
e  percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele pruprio. As
ovelhas,  a  filha  do comerciante,  os campos de  Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.







     No dia seguinte  o rapaz  encontrou-se com  o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
     ­  Estou surpreso ­  disse  ele.  ­ Meu amigo  comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira  havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
     ­ J sempre assim ­ disse o velho. ­ Chamamos de Princnpio Favorbvel. Se
vock for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza irb ganhar.
Sorte de principiante.
     ­ E por que?
     ­ Porque a vida quer que vock viva sua Lenda Pessoal.
     Depois comezou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O  rapaz  explicou que isto ngo  tinha importvncia, porque  ela era  a  mais
inteligente, e produzia bastante lg.
     ­ Onde estb o tesouro? ­ perguntou.
     ­ O tesouro estb no Egito, perto das Pirvmides.
     O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas ngo tinha
cobrado nada.
     ­ Para chegar atj ele, vock terb que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. J su ler o que ele escreveu para
vock.
     Antes  que  o  rapaz dissesse  alguma  coisa,  uma  mariposa  comezou a
esvoazar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avf; quando ele era crianza,
seu avf  lhe dissera  que  as  mariposas eram  sinal de boa  sorte. Como  os
grilos, as esperanzas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
     ­  Isto ­ disse o velho,  que  era  capaz  de ler seus  pensamentos.  ­
Exatamente como seu avf lhe ensinou. Estes sgo os sinais.
     Depois o velho  abriu o  manto que  lhe  cobria o peito. O rapaz  ficou
impressionado com o que viu, e  lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O  velho  tinha  um  peitoral  de ouro  macizo, coberto de  pedras
preciosas.
     Era realmente um rei.  Devia  estar disfarzado  assim  para  fugir  dos
salteadores.
     ­ Tome ­ disse o velho, tirando  uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral  de ouro.  ­ Chamam-se Urim e  Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "ngo". Quando vock ngo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Faza sempre uma pergunta objetiva.
     "Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decishes.  O tesouro estb
nas Pirvmides e isto  vock jb  sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisgo".
     O rapaz  guardou as pedras no  alforje . Daqui por diante, tomaria suas
pruprias decishes.
     ­ Ngo  se  esqueza  de que  tudo  j  uma coisa  su. Ngo  se esqueza  da
linguagem dos  sinais.  E, sobretudo, ngo  se esqueza de ir atj o fim de sua
Lenda Pessoal.
     "Antes, porjm, gostaria de contar-lhe uma pequena histuria.
     "Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo  da Felicidade
com  o  mais sbbio de  todos os homens.  O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,


     atj chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. Lb vivia o Sbbio
que o rapaz buscava.
     "Ao invjs de encontrar um homem santo, porjm, o nosso herui entrou numa
sala  e viu  uma atividade  imensa;  mercadores  entravam e  sanam,  pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena  orquestra tocava  melodias  suaves, e
havia uma  farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regigo do mundo.
O Sbbio conversava  com todos,  e o rapaz teve que esperar  duas  horas  atj
chegar sua vez de ser atendido.
     "O Sbbio ouviu atentamente o motivo  da visita do rapaz,  mas disse-lhe
que naquele momento ngo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que  o rapaz desse um passeio por  seu palbcio,  e  voltasse daqui a
duas horas.
     "­ Entretanto, quero lhe pedir um favor ­ completou o Sbbio, entregando
ao rapaz uma  colher de chb, onde pingou duas gotas de uleo. ­ Enquanto vock
estiver  caminhando,  carregue  esta  colher  sem  deixar  que o  uleo  seja
derramado.
     "O rapaz comezou a subir  e  descer as escadarias  do palbcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou a presenza
do Sbbio.
     "­ Entgo ­  perguntou  o  Sbbio ­ vock  viu as tapezarias da Pjrsia que
estgo na minha sala de jantar? Viu  o jardim  que o  Mestre dos  Jardineiros
demorou dez  anos  para  criar?  Reparou  nos  belos  pergaminhos  de  minha
biblioteca?
     "O rapaz, envergonhado, confessou  que ngo havia visto nada. Sua  Ūnica
preocupazgo  era  ngo  derramar  as  gotas  de uleo  que o Sbbio  lhe  havia
confiado.
     "­  Pois  entgo volte  e conheza as maravilhas  do  meu mundo ­ disse o
Sbbio. ­ Vock ngo pode confiar num homem se ngo conhece sua casa.
     "Jb mais  tranq'ilo,  o  rapaz  pegou a colher e  voltou a passear pelo
palbcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o  requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
a presenza do Sbbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
     "­ Mas onde estgo as duas gotas de uleo que  lhe confiei? ­ perguntou o
Sbbio.
     "Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
     "­  Pois este j o Ūnico conselho que  eu tenho  para lhe dar ­ disse  o
mais Sbbio dos  Sbbios. ­  O  segredo da  felicidade  estb em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de uleo na colher".
     O rapaz ficou em silkncio.  Havia compreendido a histuria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
     O  velho olhou  para o rapaz, e com  as duas mgos espalmadas fez alguns
gestos  estranhos  em sua  cabeza. Depois,  pegou  os animais e  seguiu  seu
caminho.





     No alto da  pequena  cidade de Tarifa existe um  velho forte construndo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praza,  um
pipoqueiro, e um pedazo da Bfrica. Melquisedec, o Rei de Saljm, sentou-se na
murada  do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo


     do novo dono,  e excitadas com tantas mudanzas. Tudo que  elas  queriam
era apenas comida e bgua.
     Melquisedec  olhou  o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria  a ver  o rapaz, da  mesma  maneira como jamais  tornou  a ver
Abrago, depois de lhe ter cobrado o dnzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
     Os  deuses ngo  devem  ter  desejos,  porque  os deuses  ngo tkm  Lenda
Pessoal.  Entretanto,  o Rei de Saljm torceu intimamente  para  que  o rapaz
tivesse kxito.
     "Pena que ele  vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim,  quando  falasse  a  meu  respeito,  diria  que  sou
Melquisedec, o Rei de Saljm."
     Depois  olhou para o  cju  meio arrependido:  "sei  que  j  vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei as vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".




     "Como j estranha a Bfrica", pensou o rapaz.
     Estava sentado numa espjcie de  bar igual a outros bares que ele  havia
encontrado  nas ruelas  estreitas  da  cidade.  Algumas  pessoas fumavam  um
cachimbo  gigante, que era passado de  boca em boca. Em poucas  horas  havia
visto homens  de  mgos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e comezavam a cantar ­ enquanto todos a sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabeza no solo.
     "Coisa de infijis", disse para si mesmo. Quando  crianza, via sempre na
igreja  da sua  aldeia uma imagem de  Sgo Santiago Matamouros em  seu cavalo
branco, com  a espada desembainhada, e figuras como aquelas  debaixo de seus
pjs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente  su.  Os infijis  tinham um olhar
sinistro.
     Aljm  disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um Ūnico detalhe, que podia  afastb-lo  do  seu  tesouro  por  muito  tempo:
naquele pans todos falavam brabe.
     O dono do  bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um chb amargo. O rapaz preferia beber vinho.
     Mas ngo devia  preocupar-se com isto agora. Tinha que  pensar apenas no
seu  tesouro,  e  a maneira de  consegui-lo. A venda das ovelhas  lhe  havia
deixado com  bastante dinheiro  no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mbgico: com ele ningujm jamais estb sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pirvmides. Um  velho, com todo aquele ouro no peito,
ngo precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
     O velho  lhe  havia falado  de  sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim,  sabia do que  ele estava  falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia,  havia se acostumado a ler na
terra  e nos cjus as condizhes do caminho  que  devia seguir. Aprendera  que
certo pbssaro  indicava uma cobra  por perto,  e que determinado arbusto era
sinal de bgua daqui  a  alguns quilfmetros.  As ovelhas  lhe haviam ensinado
isto.
     "Se  Deus  conduz  tgo  bem  as  ovelhas,  tambjm conduzirb  o  homem",
refletiu, e ficou mais tranq'ilo. O chb parecia menos amargo.
     ­ Quem j vock? ­ ouviu uma voz em espanhol.
     O rapaz ficou imensamente aliviado.  Estava pensando em sinais e algujm
tinha aparecido.
     ­ Como  vock fala espanhol? ­ perguntou.  O recjm-chegado era  um rapaz
vestido a maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava  que  devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
     ­ Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos hb apenas duas  horas da
Espanha.
     ­ Sente-se e  peza alguma coisa por minha conta  ­ disse o rapaz.  ­  E
peza um vinho para mim. Detesto este chb.
     ­  Ngo hb  vinho no pans  ­  disse  o recjm-chegado. ­ A  religigo  ngo
permite.
     O  rapaz disse entgo  que precisava chegar  atj  as Pirvmides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu  ficar calado. Sengo era bem capaz do brabe
querer uma parte para levb-lo atj  lb. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
     ­ Gostaria que me levasse atj lb, se puder. Posso lhe pagar como guia.
     ­ Vock tem idjia de como chegar atj lb?


     O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a  conversa. Sentia-se incomodado  com a presenza dele. Mas tinha encontrado
um guia, e ngo ia perder esta oportunidade.
     ­  Vock  tem  que  atravessar  todo  o  deserto  de  Saara  ­  disse  o
recjm-chegado. ­ E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vock tem
dinheiro suficiente.
     O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
     Tirou  seu dinheiro do bolso e mostrou ao  recjm-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou  tambjm. Os  dois trocaram algumas palavras em brabe. O
dono do bar parecia irritado.
     ­ Vamos embora ­ disse o recjm-chegado.
     ­ Ele ngo quer que continuemos aqui.
     O rapaz ficou aliviado.  Levantou-se  para pagar a  conta, mas o dono o
agarrou e  comezou  a falar  sem parar. O rapaz  era  forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi  seu  novo  amigo que empurrou o dono para o  lado  e
puxou o rapaz para fora.
     ­  Ele queria seu dinheiro  ­ disse. ­ Tvnger ngo  j igual ao resto  da
Bfrica. Estamos num porto e os portos tkm sempre muito ladrhes.
     Ele podia confiar em seu  novo  amigo. Tinha  lhe ajudado numa situazgo
crntica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
     ­  Podemos chegar  amanhg nas  Pirvmides  ­ disse o  outro,  pegando  o
dinheiro. ­ Mas preciso comprar dois camelos.
     Sanram andando pelas ruas  estreitas  de  Tvnger.  Em todo canto haviam
barracas de coisas  para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praza,
onde  funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortalizas misturadas com  adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o  rapaz  ngo  tirava o olho de  seu  novo amigo.  Afinal  de
contas,  ele  estava com todo o seu dinheiro nas  mgos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele ngo conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
     "Basta vigib-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
     De repente, no  meio de toda aquela confusgo, estava a mais bela espada
que  seus olhos  jb haviam  visto. A bainha era  prateada, e o  cabo  negro,
cravejado  de pedras. O  rapaz prometeu a  si mesmo que, quando voltasse  do
Egito, ia comprar aquela espada.
     ­ Pergunte ao dono  da barraca quanto  custa  ­ disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distrando, olhando a espada.
     Seu  corazgo  ficou  pequeno,  como  se  o  peito  tivesse  subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia  o que ia encontrar.
Os  olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atj que
o rapaz tomou coragem e se virou.
     Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelgs, as  alfaces junto as bandejas de cobre, os
homens de mgos  dadas pelas ruas, as  mulheres  de  vju, o cheiro  de comida
estranha,  e  em  nenhum lugar, mas em  nenhum lugar mesmo, o rosto  de  seu
companheiro.

     O rapaz ainda  quis  pensar que  haviam se perdido por  acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que  o  outro  voltasse.  Pouco  tempo depois  um
sujeito subiu numa  daquelas  torres e  comezou a cantar;  todas as  pessoas
ajoelharam-se no chgo,  bateram com  a  cabeza no  solo,  e cantaram tambjm.
Depois, como um bando de formigas  trabalhadoras,  desfizeram  as barracas e
foram embora.


     O  sol comezou a ir embora  tambjm.  O rapaz olhou o  sol durante muito
tempo, atj que  ele se escondeu atrbs das casas brancas que davam a volta na
praza. Lembrou-se  que quando  aquele sol nascera  de manhg, ele  estava  em
outro continente,  era  um pastor,  tinha  sessenta  ovelhas,  e um encontro
marcado  com uma moza. De manhg ele sabia tudo  que iria acontecer  enquanto
andava pelos campos.
     Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num pans diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lnngua que
falavam.  Jb ngo  era um pastor, e  ngo tinha mais nada  na  vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e comezar tudo de novo.
     "Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" ­ pensou o  rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque as vezes as coisas mudam na vida no espazo
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
     Tinha  vergonha  de chorar. Jamais  havia chorado  na  frente  de  suas
pruprias  ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e  ele estava longe da
pbtria.
     O  rapaz chorou.  Chorou porque  Deus era  injusto,  e retribuna  desta
maneira as  pessoas que  acreditavam  em seus  pruprios sonhos.  "Quando  eu
estava  com  as ovelhas eu era feliz,  e espalhava sempre felicidade a minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
     "Mas agora estou  triste  e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
ngo  vou confiar  nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram  tesouros escondidos, porque eu ngo encontrei o  meu.  E vou
sempre procurar  manter o  pouco que tenho, porque  sou pequeno demais  para
abrazar o mundo".

     Abriu  seu  alforje para  ver o  que  tinha  lb  dentro; talvez tivesse
sobrado  alguma  coisa  do  sandunche que havia  comido  no  barco.  Mas  su
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
     Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensazgo de alnvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, sandas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais  esperto",
pensou  o  rapaz, tirando as  pedras  do alforje para escondk-las dentro  do
bolso. Ali era um  porto, e esta  era a Ūnica verdade que  aquele  homem lhe
dissera; um porto estb sempre cheio de ladrhes.
     Agora entendia tambjm  o  desespero  do  dono do  bar: estava  tentando
dizer- lhe para ngo confiar naquele homem. "Sou como  todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e ngo da maneira
que as coisas acontecem".
     Ficou olhando  as  pedras.  Tocou  com  cuidado cada  uma,  sentindo  a
temperatura e a superfncie lisa. Elas  eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranq'ilidade. Elas lhe lembravam do velho.
     "Quando vock quer uma coisa,  todo o  Universo conspira para que  possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
     Queria entender como aquilo podia ser  verdade.  Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que  tinha encontrado  um rei ­ um rei que sabia a
sua histuria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experikncia sexual.
     "As pedras  servem para adivinhazgo.  Chamam-se Urim e  Tumim". O rapaz
colocou  de novo as pedras dentro do  saco e resolveu experimentar. O  velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras su  serviam para
quem sabe o que quer.


     O rapaz entgo perguntou se a bknzgo do velho continuava ainda com ele.
     Tirou uma das pedras. Era "sim".
     "Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
     Enfiou a  mgo no alforje e  ia  pegando  uma  das  pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no  tecido. O  rapaz nunca havia  percebido  que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocb-los
de novo dentro do saco. Ao  vk-las no chgo, porjm, uma outra frase surgiu em
sua cabeza.
     "Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
     Um sinal.  O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas  pedras no
chgo e as recolocou no  alforje.  Ngo pensava  costurar o buraco ­ as pedras
poderiam  escapar  por ali  sempre que desejassem. Ele havia  entendido  que
certas coisas  a  gente  ngo devia  perguntar ­  para  ngo  fugir do pruprio
destino. "Prometi tomar minhas pruprias decishes", disse para si mesmo.
     Mas  as pedras tinham dito que o velho, continuava com  ele, e isto lhe
deu  mais  confianza.  Olhou de novo para o  mercado  vazio, e ngo  sentiu o
desespero de antes. Ngo era um mundo estranho; era um mundo novo.
     Pois, afinal de  contas,  tudo  que ele  queria  era  exatamente  isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais  chegasse  atj as Pirvmides, ele
jb tinha  ido muito mais longe do que  qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles  soubessem que  a apenas  duas horas  de  barco  existem tantas  coisas
diferentes".
     O  mundo novo aparecia  na sua frente sob a forma  de um mercado vazio,
mas ele jb  vira aquele mercado cheio de vida,  e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada ­ foi um prezo caro  contemplb-la um pouco,  mas tambjm
nunca  tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vntima de um ladrgo, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
     "Sou um aventureiro  em  busca de  um tesouro", pensou,  antes  de cair
exausto no sono.


     Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela praza estava prestes a recomezar de novo.
     Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invjs de sentir-se triste, ficou feliz. Ngo  tinha mais que seguir
em busca de bgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. Ngo tinha um
centavo no bolso, mas tinha fj na vida. Havia  escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
     Comezou a andar  sem pressa  pela praza. Os mercadores colocaram em  pj
suas barracas; ajudou um doceiro a  montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto  daquele  doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
comezar um bom  dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho  e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro ngo
estb  fazendo doces porque quer viajar,  ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o  rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho ­ saber se uma pessoa estb
pruxima ou distante de sua  Lenda Pessoal. Su em olhar para ela. "J fbcil, e
eu nunca havia percebido isto."
     Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro  lhe estendeu o primeiro
doce que  havia  feito. O rapaz comeu  satisfeito, agradeceu,  e seguiu  seu
caminho. Quando jb


     havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando brabe e a outra, espanhol.
     E tinham se entendido perfeitamente.
     "Existe uma linguagem que estb aljm das palavras", pensou o  rapaz. "Eu
jb experimentei  isto com  as ovelhas, e agora  estou  experimentando com os
homens."
     Estava  aprendendo  vbrias  coisas  novas.  Coisas  que  ele  jb  havia
experimentado, e que no  entanto  eram novas, porque tinham passado  por ele
que  tivesse percebido. E  ngo tinha percebido, porque estava acostumado com
elas.  "Se  eu  aprender a  decifrar esta  linguagem  sem  palavras,  eu vou
conseguir decifrar o mundo".
     "Tudo j uma coisa su", falava o velho.
     Resolveu  andar  sem pressa  e  sem  ansiedade  pelas pequenas  ruas de
Tvnger: su desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia  muita
pacikncia, mas esta j a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando  naquele mundo  estranho as mesmas lizhes  que
suas ovelhas lhe ensinaram.
     "Tudo j uma coisa su", havia falado o velho.




     O  Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angŪstia que
experimentava  todas as manhgs. Estava hb quase  trinta anos  naquele  mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer  coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e  comprar  cristais. Houve um tempo em que  muita gente conhecia
sua loja: mercadores brabes, geulogos franceses e ingleses, soldados alemges
sempre com dinheiro no  bolso. Naquela jpoca era uma grande  aventura vender
cristais, e ele pensava como ia  ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
     Depois  o tempo foi passando, e a cidade tambjm. Ceuta cresceu mais que
Tvnger, e o comjrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas  na ladeira. Ningujm ia subir  uma ladeira por  causa  de umas
poucas lojas.
     Mas o Mercador de Cristais ngo tinha escolha.  Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo pezas de cristal, e  agora era tarde demais
para mudar de rumo.
     Durante a manhg inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo hb anos, e jb sabia o horbrio de cada pessoa. Quando  faltavam alguns
minutos para o almozo, um  rapaz estrangeiro parou diante  de  sua  vitrine.
Estava vestido  normalmente,  mas os  olhos  experimentados  do  Mercador de
Cristais conclunram que ele ngo tinha dinheiro. Mesmo  assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, atj que o rapaz fosse embora.






     Havia um  cartaz na porta dizendo  que ali se falavam vbrias lnnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrbs do balcgo.
     ­ Posso limpar estes vasos se vock quiser ­ disse o rapaz. ­ Assim como
eles estgo, nenhum comprador vai querer comprar.
     O homem olhou sem dizer nada
     ­ Em troca, vock me paga um prato de comida.
     O homem continuou em silkncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisgo. Dentro de seu alforje havia o casaco ­ ngo ia precisar mais dele no
deserto.  Tirou  o casaco e  comezou a limpar os  vasos.  Durante  meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
     Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
     ­ Vamos comer ­ disse o Mercador de Cristais.
     Colocou uma tabuleta na porta, e  foram atj um minŪsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na Ūnica mesa  existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
     ­ Ngo era preciso limpar nada ­ disse. ­ A  lei do Alcorgo obriga a dar
de comer a quem tem fome.
     ­ Entgo por que me deixou fazer isto? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque os cristais  estavam sujos. E  tanto vock como eu precisbvamos
limpar as cabezas dos maus pensamentos.
     Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
     ­  Queria que  vock trabalhasse na  minha  loja  . Hoje  entraram  dois
fregueses enquanto vock limpava os vasos, e isto j um bom sinal.
     "As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas  ngo percebem
o que estgo dizendo. Da mesma maneira que eu ngo percebia que hb muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
     ­ Quer trabalhar para mim? ­ insistiu o Mercador.
     ­ Posso trabalhar o resto do dia ­ respondeu o rapaz. ­ Limparei atj de
madrugada  todos os cristais  da  loja. Em  troca, preciso  de dinheiro para
estar amanhg no Egito.
     O velho riu de novo.
     ­ Mesmo que vock  limpasse meus cristais  durante um ano inteiro, mesmo
que vock ganhasse uma boa comissgo de vendas  em cada um deles, ainda ia ter
que  arranjar  dinheiro  emprestado para ir  ao Egito.  Existem  milhares de
quilfmetros de deserto entre Tvnger e as Pirvmides.

     Houve  um momento de  silkncio tgo  grande,  que a  cidade  parecia ter
adormecido. Jb ngo haviam mais  os bazares, as discusshes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas  com seus punhos
cravejados. Jb ngo havia mais a esperanza e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais,  o tesouro  e  as  pirvmides.  Era como se todo o mundo  estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silkncio. Ngo  havia. nem  dor, nem
sofrimento,  nem decepzgo: apenas um olhar vazio atravjs da pequena porta do
bar,  e  uma  vontade  imensa  de morrer,  de que tudo  acabasse para sempre
naquele minuto.



     O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhg houvesse subitamente desaparecido.
     ­ Posso lhe dar  dinheiro para voltar  a sua terra, meu filho ­ disse o
Mercador de Cristais.
     O rapaz continuou em silkncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
     ­ Vou trabalhar com o senhor ­ disse.
     E depois de outro silkncio demorado, concluiu:
     ­ Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.









     Hb quase um mks o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e ngo  era  exatamente o  tipo de  emprego que lhe  fazia feliz.  O Mercador
passava  o  dia  inteiro  resmungando  atrbs do balcgo, pedindo que  tomasse
cuidado com as pezas, que ngo deixasse quebrar nada.
     Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
ngo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissgo em cada peza vendida, e jb
havia  conseguido  juntar algum dinheiro.  Naquela manhg  havia feito certos
cblculos: se continuasse  a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
     ­  Gostaria  de fazer uma estante para os cristais  ­  disse o rapaz ao
Mercador.  ­  Ela pode  ser colocada do  lado  de  fora, e  atrair quem estb
passando lb embaixo da ladeira.
     ­  Nunca fiz uma estante antes  ­ respondeu o  Mercador.  ­ As  pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
     ­ Quando  eu  andava pelo  campo com  as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma  cobra.  Mas isto  faz  parte  da  vida das  ovelhas e  dos
pastores.
     O  Mercador atendeu  um freguks  que desejava trks  vasos  de  cristal.
Estava vendendo  melhor do  que nunca,  como  se o  mundo tivesse voltado no
tempo, para a jpoca em que a rua era uma das principais atrazhes de Tvnger.
     ­ O movimento jb melhorou bastante ­ disse  ao  rapaz, quando o freguks
saiu.  ­  O dinheiro  permite que  eu viva melhor, e  lhe devolverb  as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
     ­ Porque  temos que seguir os sinais ­ falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia  encontrado um
rei.
     "Chama-se Princnpio Favorbvel,  sorte  de  principiante.  Porque a vida
quer que vock viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
     O  Mercador,  entretanto, estava entendendo o  que  o rapaz  falava.  A
simples presenza dele na loja era  um  sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele ngo estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o  rapaz estivesse ganhando mais do que  devia; como ele
sempre havia achado  que  as vendas ngo  mudavam  mais, tinha oferecido  uma
comissgo alta,  e sua intuizgo dizia que em breve o garoto estaria de  volta
as suas ovelhas.
     ­  Por que vock queria conhecer as Pirvmides? ­ perguntou, para mudar o
assunto da estante.
     ­ Porque sempre me falaram nelas ­ disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o  tesouro era uma lembranza sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
     ­ Eu ngo conhezo ningujm aqui que queira atravessar  o deserto su  para
conhecer as Pirvmides ­ disse o  Mercador.  ­ Sgo apenas um monte de pedras.
Vock pode construir uma no seu quintal.
     ­ Vock nunca teve  sonhos de viajar ­ disse o rapaz, atendendo mais  um
freguks que entrava na loja.





     Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
     ­  Ngo  gosto de mudanzas ­ disse o  Mercador. ­ Nem eu nem  vock somos
como Hassan, o  rico  comerciante. Se ele erra numa compra, isto ngo o afeta
muito. Mas nus dois temos sempre que conviver com nossos erros.
     "J verdade", pensou o rapaz.
     ­ Para que vock quer a estante? ­ disse o Mercador.
     ­  Quero voltar mais rbpido para minhas ovelhas.  Temos  que aproveitar
quando a sorte  estb do  nosso lado, e fazer  tudo  para ajudb-la  da  mesma
maneira que ela  estb nos ajudando.  Chama-se Princnpio Favorbvel. Ou "sorte
de principiante".
     O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
     ­  O Profeta nos deu o Alcorgo,  e  nos deixou apenas  cinco obrigazhes
para serem seguidas em nossa existkncia. A mais  importante j a seguinte: su
existe um Deus. As outras sgo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mks
de Ramadg, fazer caridade com os pobres.
     Parou  de falar. Seus olhos ficaram cheios de bgua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso,  e mesmo com toda a sua impacikncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei muzulmana.
     ­ E qual a quinta obrigazgo? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Hb dois dias  atrbs vock disse que eu nunca  tive  sonhos de viajar ­
respondeu o Mercador.  ­ A quinta obrigazgo de todo muzulmano j  uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, a cidade sagrada de Meca.
     "Meca j muito mais longe que as Pirvmides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que  tinha para  comezar  esta loja.  Pensava em ser
rico  algum  dia, para ir  a Meca. Passei a  ganhar dinheiro, mas ngo  podia
deixar  ningujm  cuidando  dos  cristais,  porque  os  cristais  sgo  coisas
delicadas.  Ao mesmo tempo, via  passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na direzgo de  Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um sjquito de criados e de camelos, mas a maior  parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
     "Todas iam  e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
snmbolos da peregrinazgo.  Uma delas, um sapateiro que vivia de  remendar as
botas alheias,  me disse que havia caminhado quase  um ano pelo deserto, mas
que  ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirhes
em Tvnger para comprar couro".
     ­ Por que ngo vai a Meca agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque Meca j o que  me mantjm  vivo.  J o  que me faz ag'entar todos
estes dias iguais, estes vasos  calados nas prateleiras, o almozo e o jantar
naquele restaurante horrnvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois ngo
ter mais motivos para continuar vivo.
     "Vock  sonha com  ovelhas e com pirvmides. J  diferente de mim,  porque
deseja  realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com  Meca. Jb  imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praza onde estb a
Pedra Sagrada, as sete voltas que  devo dar em torno dela antes de  tocb-la.
Jb  imaginei quais  pessoas estargo  do  meu lado,  na  minha frente,  e  as
conversas e orazhes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decepzgo, entgo prefiro apenas sonhar".
     Neste dia, o Mercador deu permissgo  ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.








     Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses a loja
dos cristais. O rapaz  calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar a Espanha e comprar sessenta  ovelhas,  e  mais  sessenta ovelhas. Em
menos de um ano  ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
brabes,  porque jb conseguia  falar aquela  lnngua  estranha. Depois daquela
manhg no mercado, ele  ngo  havia mais utilizado o Urim e o  Tumim, porque o
Egito  passou a ser apenas um sonho tgo distante  para ele como era a cidade
de Meca para o  Mercador. Entretanto, o  rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia  em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
     "Lembre-se de saber  sempre o que  quer", havia falado o velho  rei.  O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar aquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar  o nŪmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
     Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes,  como
o  comjrcio  de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem  no alto  da ladeira,  reclamando que  era impossnvel encontrar  um
lugar decente para beber alguma  coisa depois  de toda a subida. O rapaz  jb
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
     ­ Vamos vender chb para as pessoas que sobem a ladeira ­ disse ele.
     ­ Muitas pessoas vendem chb por aqui ­ respondeu o Mercador.
     ­  Podemos vender chb em vasos  de cristal. Assim as pessoas vgo gostar
do chb, e vgo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz  os homens
j a beleza.
     O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo.  Ngo respondeu nada.
Mas naquela  tarde, depois de  fazer suas orazhes e fechar a loja, sentou-se
na calzada com ele e convidou-o a fumar narguilj  ­ aquele estranho cachimbo
que os brabes usavam.
     ­ O que vock estb procurando? ­ perguntou o velho Mercador de Cristais.
     ­ Jb  lhe  disse.  Preciso comprar de volta as ovelhas.  E para isto  j
necessbrio dinheiro.
     O  velho colocou  algumas  brasas  novas no  narguilj,  e deu uma longa
tragada.
     ­ Hb trinta anos  tenho  esta loja. Conhezo o bom  e  o mau cristal,  e
conhezo  todos os detalhes  do seu funcionamento.  Estou  acostumado com seu
tamanho  e seu movimento.  Se  vock  colocar  chb  em cristais, a  loja  irb
crescer. Entgo eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
     ­ E isto ngo j bom?
     ­ Estou acostumado com minha  vida. Antes de vock, eu pensava que havia
perdido  tanto tempo  no  mesmo lugar,  enquanto meus amigos todos  mudavam,
quebravam,  ou progrediam Isto me deixava com  uma imensa tristeza. Agora eu
sei que ngo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. Ngo  quero mudar,  porque  ngo sei  como mudar.  Jb estou muito
acostumado comigo mesmo.
     O rapaz ngo sabia o que dizer. O velho entgo continuou:
     ­ Vock foi uma bknzgo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bknzgo que ngo j aceita, transforma-se numa  maldizgo. Eu ngo  quero mais da
vida.  E vock estb  me forzando  a  ver  riquezas e  horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conhezo, e  que conhezo minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me  sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
ngo quero.


     "Ainda bem que eu ngo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
     Continuaram fumando  o  narguilj  por algum tempo,  enquanto  o  sol se
escondia. Estavam conversando em brabe, e o rapaz estava  satisfeito consigo
mesmo, porque falava brabe. Houve uma jpoca em  que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas ngo sabiam ensinar brabe.
     "Devem ter outras  coisas no mundo  que as ovelhas ngo sabem  ensinar",
pensou  o  rapaz, enquanto  olhava o Mercador  em silkncio. "Porque elas  su
estgo em busca de bgua e comida.
     "Acho que ngo sgo elas que ensinam: eu j que aprendo".
     ­ Maktub ­ disse finalmente o mercador.
     ­ O que j isto?
     ­ Vock precisaria ter nascido brabe para compreender ­ respondeu ele. ­
Mas a traduzgo seria algo como "estb escrito".
     E  enquanto  apagava as brasas  do narguilj,  disse  que o  rapaz podia
comezar a vender chb nos vasos. As vezes, j impossnvel deter o rio da vida.


     Os homens subiam a ladeira e ficavam  cansados. Entgo, lb no seu  topo,
havia uma loja  de belos  cristais  com  chb de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chb, que era servido em lindos vasos de cristal.
     "Jamais minha  mulher pensou nisto", lembrava  um,  e  comprava  alguns
cristais,  porque ia  ter  visitas naquela  noite: seus convidados  ficariam
impressionados com a riqueza das tazas. Outro  homem passou a garantir que o
chb  era  sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o  aroma. Um  terceiro  disse  ainda  que era tradizgo no
Oriente utilizar  vasos  de cristal junto com chb, por causa de seus poderes
mbgicos.
     Em  pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas  pessoas  passaram  a
subir atj o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo  de
novo num comjrcio tgo antigo. Outras  lojas de chb em copos de cristal foram
abertas, mas  ngo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam  sempre
vazias.
     Em  pouco tempo, o  Mercador teve que contratar  mais dois  empregados.
Passou a  importar, junto com os  cristais, quantidades  enormes de chb, que
eram  diariamente  consumidas  pelos homens e mulheres  com  sede de  coisas
novas.
     E assim transcorreram seis meses.






     O  rapaz acordou antes do  sol nascer. Tinham-se passado  onze meses  e
nove  dias  desde  que  ele havia  pisado pela  primeira vez  no  continente
africano.
     Vestiu sua  roupa  brabe, de linho branco, comprada especialmente  para
aquele  dia.  Colocou o lenzo na cabeza, fixo por  um anel feito de  pele de
camelo. Calzou as sandblias novas, e desceu sem fazer qualquer rundo.
     A cidade ainda dormia. Ele fez  um  sandunche de  gergelim, e bebeu chb
quente  no vaso de cristal. Depois  sentou-se  na soleira da porta,  fumando
sozinho o narguilj.
     Fumou em silkncio, sem pensar em nada, escutando  apenas o rundo sempre
constante  do  vento  que  soprava  trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de  f'umar, enfiou  a mgo  num dos bolsos  do traje, e  ficou  alguns
instantes contemplando o que havia retirado lb de dentro.
     Havia um  grande  mazo de dinheiro. O suficiente para comprar  cento  e
vinte  ovelhas, uma  passagem de  volta, e uma licenza de comjrcio entre seu
pans e o pans onde estava.
     Esperou pacientemente que o velho acordasse e  abrisse  a loja. Os dois
entgo foram juntos tomar mais chb.
     ­ Vou embora hoje ­ disse o rapaz. ­ Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Vock tem dinheiro para ir a Meca.
     O velho ngo disse nada.
     ­ Pezo sua bknzgo ­ insistiu o rapaz. ­ Vock me ajudou.
     O  velho continuou  a  preparar o chb em silkncio.  Depois de  um certo
tempo, porjm, virou-se para o rapaz.
     ­ Tenho orgulho de vock ­ disse. ­ Vock  trouxe alma para a  minha loja
de cristais.  Mas sabe que  eu ngo vou  a Meca. Como sabe que ngo  voltarb a
comprar ovelhas.
     ­ Quem lhe disse isto? ­ perguntou o rapaz, assustado.
     ­ Maktub ­ disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
     E o abenzoou.


     O rapaz  foi atj seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram  trks sacolas
cheias. Quando jb estava saindo, notou  que,  num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava  todo amassado, e ele quase nem  se lembrava
mais dele. Lb dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando  em dar de presente para um rapaz na  rua, as duas pedras
rolaram pelo chgo. O Urim e o Tumim.
     O rapaz  entgo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber hb
quanto tempo ngo pensava  mais nisto.  Durante  um ano havia  trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para ngo voltar de cabeza baixa
para a Espanha.
     "Nunca  desista  dos seus sonhos", havia falado o  velho  rei. "Siga os
sinais".
     O  rapaz pegou o  Urim e  o  Tumim no  chgo, e  teve  novamente  aquela
estranha sensazgo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
     "Vou  voltar exatamente  a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E  as
ovelhas ngo me ensinaram a falar brabe".


     As   ovelhas,   entretanto,  tinham   ensinado  uma  coisa  muito  mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com  amor e com vontade, em
busca  de algo que se  desejava ou em que se  acreditava.  Tvnger jb ngo era
mais  uma  cidade  estranha, e ele  sentiu que  da  mesma maneira  que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
     "Quando vock deseja  uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizb-la", havia falado o velho rei.
     Mas o velho rei ngo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus  sonhos mas ngo desejam  realizb-los.  O velho rei  ngo
havia falado que as Pirvmides eram apenas  um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que,  quando se tem  dinheiro  para comprar um rebanho  maior do  que o  que
possuna, deve-se comprar este rebanho.
     O  rapaz pegou o  alforje  e  juntou com seus outros  sacos.  Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses  andavam pela  loja, tomando  chb em vasos de cristal. Era um  bom
movimento para  aquela  hora  da manhg.  Do  lugar  onde estava,  notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito  o cabelo do velho rei.
Lembrou-se  do  sorriso do  doceiro, no primeira dia  em  Tvnger, quando ngo
tinha para onde ir  nem o  que comer; tambjm aquele sorriso lembrava o velho
rei.
     "Como se ele tivesse passado por aqui e  deixado uma marca", pensou. "E
cada  pessoa  ngo tivesse jb conhecido  este rei  em algum  momento de  suas
existkncias. Afinal de  contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".

     Saiu sem se despedir do Mercador de  Cristais. Ngo queria chorar porque
as  pessoas podiam ver. Mas  ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido.  Estava  mais confiante  em si  e  tinha
vontade de conquistar o mundo.
     "Mas  estou indo para os campos que  jb conhezo,  conduzir de  novo  as
ovelhas". E ngo estava mais contente com sua decisgo.  Tinha  trabalhado  um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua importvncia. Talvez porque ngo fosse seu sonho.
     "Quem sabe j melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir a Meca, e
viver  da  vontade de conheck-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mgos, e estas pedras lhe  traziam a forza e a vontade  do velho rei. Por uma
coincidkncia  ­ ou  um  sinal, pensou o rapaz ­ ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. Ngo havia mais o  ladrgo,  e o dono lhe  trouxe uma
xncara de chb.
     "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca  mais me  esquecerei  de como elas  sgo. Mas talvez ngo
tenha outra  oportunidade de chegar atj as Pirvmides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histuria.  Era um rei  de verdade, um rei
sbbio".
     Estava apenas a  duas  horas de  barco das planncies de Andaluzia,  mas
havia um  deserto  inteiro  entre ele as  Pirvmides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situazgo:  na verdade, ele  estava duas horas
mais  perto do seu  tesouro.  Mesmo  que,  para caminhar  estas duas  horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
     "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu jb conhezo as ovelhas;
ngo dgo muito trabalho, e podem ser  amadas. Ngo sei  se o deserto  pode ser
amado,  mas  j o deserto  que esconde  o meu tesouro.  Se  eu ngo  conseguir
encontrb-lo, poderei sempre voltar


     para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que ngo?"
     Sentiu uma alegria  imensa naquele momento.  Sempre podia  voltar a ser
pastor de  ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. Ngo acontecia com qualquer pessoa.
     Estava  contente  quando  saiu do bar. Havia se  lembrado  que  um  dos
fornecedores  do Mercador trazia  os cristais em  caravanas  que  cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mgos; por causa daquelas  duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
     "Sempre estou  perto dos que vivem a  Lenda Pessoal",  dissera  o velho
rei.
     Ngo custava  nada ir atj o armazjm, saber se as Pirvmides eram  de fato
muito longe.







     O Inglks estava sentado numa construzgo  cheirando a animais,  suor,  e
poeira.  Ngo podia chamar  aquilo de armazjm;  era apenas um curral. "Toda a
minha  vida  para ter  que passar por  um lugar  como este", pensou enquanto
folheava distrando uma revista de qunmica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
     Mas  era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais.  Toda a
sua vida, todos os  seus estudos foram  em  busca  da linguagem Ūnica  que o
Universo  falava. Primeiro  havia se  interessado por  Esperanto, depois por
religihes,  e  finalmente  por Alquimia.  Sabia  falar  Esperanto,  entendia
perfeitamente as diversas  religihes, mas ainda ngo era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar  coisas  importantes,  j  verdade.  Mas  suas  pesquisas
chegaram a  um ponto onde ngo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vgo
entrar em  contato  com  algum alquimista. Mas os alquimistas  eram  pessoas
estranhas, que  su pensavam neles mesmos, e  quase sempre  recusavam  ajuda.
Quem sabe, ngo haviam descoberto o segredo da Grande Obra ­ chamada de Pedra
Filosofal ­ e por isso se fechavam no silkncio.
     Jb  havia  gasto parte  da  fortuna que seu pai  lhe  deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal.  Tinha freq'entado as melhores bibliotecas do
mundo, e  comprado  os livros mais importantes e mais raros sobre  alquimia.
Num  deles  descobriu que hb muitos  anos atrbs, um famoso alquimista  brabe
havia  visitado a  Europa. Diziam  que ele tinha mais de duzentos anos,  que
havia descoberto a Pedra  Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O Inglks ficou
impressionado com a  histuria. Mas tudo ngo teria passado de mais uma lenda,
se um amigo  seu ­ voltando de  uma expedizgo arqueolugica  no deserto ­ ngo
lhe tivesse contado sobre um brabe que tinha poderes excepcionais.
     ­ Mora  no obsis de Al-Fayoum ­ disse seu  amigo. ­ E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que j capaz de transformar qualquer metal em ouro.
     O  Inglks ngo coube  em  si de tanta excitazgo.  Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos,  juntou  os  livros  mais importantes,  e  agora
estava  ali,  naquele armazjm parecido com um  curral, enquanto lb fora  uma
imensa caravana se preparava  para cruzar o  Saara.  A caravana  passava por
Al-Fayoum.
     "Tenho  que  conhecer  este maldito Alquimista", pensou o  Inglks.  E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerbvel.




     Um  jovem brabe,  tambjm carregado de  malas, entrou no  lugar  onde  o
Inglks estava e o cumprimentou.
     ­ Aonde vock vai? ­ perguntou o jovem brabe.
     ­ Para o deserto ­ respondeu o Inglks, e voltou para a sua leitura. Ngo
queria conversar agora. Precisava recordar  tudo que havia  aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetk-lo a alguma espjcie de prova.
     O jovem brabe tirou um livro e comezou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda  bem", pensou  o  Inglks. Sabia falar espanhol  melhor  que
brabe, e se este rapaz  fosse  atj  Al-Fayoum, ia  ter algujm para conversar
quando ngo estivesse ocupado com coisas importantes.


     "Que coisa  engrazada"  ­ pensou o rapaz enquanto tentava mais  uma vez
ler a cena  do  enterro que  iniciava o livro.  ­  "Faz quase dois  anos que
comecei a ler, e ngo consigo  passar destas pbginas".  Mesmo sem um rei para
interrompk-lo,  ele  ngo  conseguia  se concentrar.  Ainda  estava em dŪvida
quanto  a  sua  decisgo. Mas  estava  percebendo  uma coisa  importante:  as
decishes  eram  apenas o  comezo de  alguma coisa.  Quando algujm tomava uma
decisgo, na verdade estava mergulhando numa  correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
     "Quando  resolvi ir  em busca do meu  tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja  de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocnnio.  "Da
mesma maneira, esta  caravana pode ser  uma decisgo minha,  mas seu percurso
serb sempre um mistjrio".
     Na sua  frente havia  um europeu tambjm lendo um  livro.  O europeu era
antipbtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atj ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
     O  rapaz fechou o livro. Ngo queria fazer nada que o deixasse  parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e comezou a brincar com
eles.
     O estrangeiro deu um grito:
     ­ Um Urim e um Tumim!
     O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
     ­ Ngo estgo a venda ­ disse.
     ­ Ngo valem muito ­ disse o Inglks. ­ Sgo cristais de rocha, nada mais.
Hb  milhhes de cristais de rocha na terra, mas para  quem entende, estes sgo
Urim e Tumim. Ngo sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
     ­ Foi o presente de um rei ­ disse o rapaz.
     O estrangeiro  ficou mudo.  Depois enfiou  a  mgo  no bolso e  retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
     ­ Vock falou em um rei ­ disse.
     ­ E  vock  ngo acredita que os reis  conversem  com  pastores ­ disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
     ­ Ao contrbrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei  que
o resto  do mundo recusou-se a conhecer.  Por isso j  muito provbvel que  os
reis conversem com pastores.
     E completou, com medo que o rapaz ngo estivesse entendendo:


     ­  Estb na Bnblia. No mesmo livro  que me ensinou a  fazer este  Urim e
este Tumim.  Estas pedras  eram a Ūnica  forma de adivinhazgo  permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
     O rapaz ficou contente de estar naquele armazjm.
     ­ Talvez isto seja um sinal ­ disse o Inglks, como quem pensa alto.
     ­ Quem lhe  falou  em  sinais?  ­ o interesse  do rapaz crescia a  cada
momento.
     ­  Tudo  na vida sgo  sinais ­  disse o  Inglks,  desta vez fechando  a
revista que estava lendo.  O Universo j  feito por uma lnngua que todo mundo
entende,  mas que jb se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
aljm de outras coisas.
     "Por isso estou aqui. Porque  tenho que  encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
     A conversa foi interrompida pelo chefe do armazjm.
     ­ Vocks estgo com sorte ­  disse o brabe gordo. ­ Sai hoje a  tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
     ­ Mas eu vou ao Egito ­ disse o rapaz.
     ­ Al-Fayoum j no Egito ­ disse o dono.
     ­ Que tipo de brabe vock j?
     O  rapaz  disse  que  era  espanhol. O  Inglks ficou  satisfeito: mesmo
vestido como brabe, o rapaz pelo menos era europeu.
     ­ Ele chama  de "sorte" os sinais  ­ disse o Inglks, depois que o gordo
brabe saiu. ­ Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopjdia sobre as
palavras  "sorte" e "coincidkncia". J com estas palavras  que  se  escreve a
Linguagem Universal.
     Depois  comentou  com  o  rapaz   que  ngo  havia  sido  "coincidkncia"
encontrb-lo com o Urim e o Tumim na mgo. Perguntou se ele tambjm estava indo
em busca do Alquimista.
     ­ Estou indo em busca  de um tesouro  ­ disse o  rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o Inglks pareceu ngo dar importvncia.
     ­ De certa forma, eu tambjm estou, disse.
     ­ E nem  sei  o que quer dizer Alquimia  ­ completou  o rapaz, quando o
dono do armazjm comezou a chamb-los para fora.





     ­ Eu sou o Lnder da Caravana ­ disse  um senhor de barba longa  e olhos
escuros. ­  Tenho poder de vida e  de  morte sobre  cada pessoa que carrego.
Porque o deserto j uma mulher caprichosa, e as vezes deixa os homens loucos.
     Haviam  quase duzentas pessoas, e  o  dobro  de  animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O Inglks tinha vbrias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres,  crianzas,  e  vbrios  homens  com espadas  na  cintura  e  longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o  Lnder teve
que repetir vbrias vezes suas palavras para que todos entendessem.
     ­  Hb vbrios homens e deuses diferentes  no corazgo destes  homens. Mas
meu  Ūnico Deus j Allah, e por ele eu juro que  farei  o possnvel e o melhor
para  vencer mais  uma vez  o deserto. Agora quero que cada um de vocks jure
pelo Deus em que acredita, no fundo


     do seu  corazgo, de que  irb me obedecer em  qualquer circunstvncia. No
deserto, a desobedikncia significa a morte.
     Um murmŪrio correu baixo por todas as  pessoas. Estavam  jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou  por Jesus Cristo. O Inglks ficou em
silkncio. O murmŪrio se estendeu um tempo maior do que uma simples  jura; as
pessoas tambjm estavam pedindo protezgo aos cjus.
     Ouviu-se um longo toque de  clarim,  e cada um montou em seu  animal. O
rapaz  e  o  Inglks  haviam  comprado  camelos,  e  subiram  com  uma  certa
dificuldade. O rapaz ficou  com pena do camelo do  Inglks: estava  carregado
com as pesadas sacolas de livros.
     ­  Ngo  existem  coincidkncias ­ disse o Inglks,  tentando  continuar a
conversa que haviam iniciado no armazjm.  ­ Foi um amigo  que me trouxe  atj
aqui, porque conhecia um brabe, que...
     Mas a  caravana  comezou  a andar, e ficou  impossnvel escutar o  que o
Inglks  estava dizendo.  Entretanto,  o rapaz  sabia  exatamente do  que  se
tratava: a cadeia misteriosa que vai  unindo uma coisa  com  a outra,  que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
Bfrica, e encontrar na praza um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
     "Quanto mais  se  chega perto  do  sonho,  mais a Lenda  Pessoal vai se
tornando a verdadeira razgo de viver", pensou o rapaz.





     A  caravana comezou a seguir  em  direzgo ao poente. Viajavam de manhg,
paravam quando o sol ficava mais forte, e  seguiam de novo ao entardecer.  O
rapaz conversava  pouco com o Inglks,  que passava a  maior parte  do  tempo
entretido pelos livros.
     Entgo, passou a  observar em silkncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora  tudo  era  muito diferente do  dia  em  que  haviam partido:
naquele dia, confusgo e gritos, choros e crianzas e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
     No deserto, porjm,  havia apenas o vento eterno, o silkncio, e o  casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
     "Jb cruzei muitas vezes estas areias" ­ disse um cameleiro certa noite.
"Mas o  deserto  j tgo  grande,  os horizontes ficam tgo longe, que  fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silkncio".
     O rapaz entendeu o que o  cameleiro queria dizer, mesmo  sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o  mar ou o fogo, era  capaz de
ficar horas em silkncio, sem pensar em nada, mergulhado  na imensidgo  e  na
forza dos elementos.
     "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambjm
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sbbio".
     O vento ngo parava nunca. O  rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse rozando
de leve pela lg  de suas  ovelhas, que seguiam em busca  de alimento e  bgua
pelos campos de Andaluzia.
     "Ngo  sgo  mais  minhas  ovelhas",  disse para  si  mesmo,  sem  sentir
saudades. "Devem ter  se acostumado  a um novo  pastor,  e jb me esqueceram.
Isto  j bom.  Quem estb  acostumado  a viajar, como as  ovelhas,  sabe que j
sempre necessbrio partir um dia".
     Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve  certeza de  que ela
jb  havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com  um pastor  que tambjm
soubesse ler e contasse histurias extraordinbrias; afinal, ele ngo devia ser
o Ūnico. Mas  ficou  impressionado  com  o  seu  pressentimento: talvez  ele
estivesse aprendendo tambjm esta histuria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente  de todos os  homens. "Pressentimentos",  como sua  mge
costumava dizer. O rapaz  comezou  a entender que os pressentimentos eram os
rbpidos mergulhos que a alma  dava nesta corrente  Universal de vida, onde a
histuria de todos  os  homens  estb  ligada entre si, e podemos saber  tudo,
porque tudo estb escrito.
     "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.

     O deserto era as vezes feito de  areia, e as vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam  diante
de um rochedo,  davam  uma  longa volta.  Se a areia era fina  demais para o
casco dos camelos, procuravam um  lugar  onde a areia fosse mais resistente.
As  vezes o chgo estava coberto  de  sal, no lugar onde um  lago devia haver
existido.  Os  animais  entgo  se  queixavam,  e  os  cameleiros  desciam  e
desatolavam  os  animais.  Depois  colocavam  as cargas nas pruprias costas,
passavam pelo chgo traizoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lanzavam a sorte  e escolhiam um novo
guia.
     Mas  tudo  isto acontecia  por uma Ūnica  razgo:  ngo importava quantas
voltas  tivesse  que  dar,  a caravana seguia sempre em direzgo  a um  mesmo
ponto. Depois de vencidos os obstbculos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posizgo


     do obsis. Quando as  pessoas  viam aquele astro  brilhando no cju  pela
manhg, sabiam  que ele  indicava um  lugar  com mulheres,  bgua,  tvmaras  e
palmeiras.  Su o Inglks  ngo percebia aquilo:  estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
     O rapaz tambjm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas  achava muito mais interessante olhar a caravana e  escutar o
vento.  Assim  que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se  afeizoar  a
ele, jogou  o livro fora. Era um peso  desnecessbrio,  apesar do rapaz haver
criado  a  superstizgo  de que toda vez que abria o livro, encontrava algujm
importante.
     Terminou fazendo  amizade  com o  cameleiro  que  viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
     Numa destas conversas o cameleiro comezou a falar de sua vida.
     ­ Eu morava num lugar perto de El Cairum ­ contou. ­ Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que ngo ia mudar atj o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita  foi melhor, seguimos  todos  para Meca,  e eu cumpri a Ūnica
obrigazgo que estava faltando na minha vida. Podia morrer  em paz, e gostava
disto.
     "Certo dia a terra comezou a tremer, e o Nilo subiu aljm do seu limite.
Aquilo que eu pensava  que su acontecia com os outros,  terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundazgo;
minha mulher  teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas bguas. E
eu tive pavor de ver destrundo tudo que havia conquistado.
     "Mas ngo houve jeito.  A terra ficou  imprestbvel  e tive que  arranjar
outro meio de vida.
     Hoje  sou  cameleiro. Mas an entendi  a palavra de Allah: ningujm sente
medo do desconhecido, porque  qualquer pessoa j capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
     "Su  sentimos medo de perder aquilo que temos,  sejam  nossas  vidas ou
nossas plantazhes. Mas este  medo passa quando entendemos que nossa histuria
e a histuria do mundo foram escritas pela mesma Mgo".


     As vezes as caravanas se encontravam durante a noite.  Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando ­ como se realmente tudo fosse escrito
por uma  su Mgo. Os cameleiros trocavam informazhes  sobre as tempestades de
vento, e  se  reuniam em  torno das  fogueiras,  contando  as  histurias  do
deserto.
     Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuzados; eram bedunnos que
espionavam a  rota seguida pelas caravanas.  Davam notncias de assaltantes e
tribos  bbrbaras. Chegavam  no silkncio e partiam no silkncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.

     Numa  destas noites o cameleiro veio atj  a fogueira onde  o rapaz  e o
Inglks estavam sentados.
     ­ Hb rumores de guerra entre os clgs ­ disse o cameleiro.
     Os trks ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo  que
ningujm tivesse  dito nenhuma  palavra.  Mais  uma vez  estava percebendo  a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
     Depois de certo tempo, o Inglks perguntou se havia perigo.


     ­ Quem entra no deserto ngo pode voltar  ­  disse o cameleiro. ­ Quando
ngo  se  pode  voltar, su devemos ficar  preocupado  com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto j por conta de Allah, inclusive o perigo.
     E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
     ­ Vock  precisa prestar  mais atenzgo as caravanas ­  disse  o rapaz ao
Inglks, depois  que o cameleiro saiu. ­  Elas dgo  muitas  voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
     ­ E vock devia ler mais sobre o mundo ­ respondeu o Inglks. ­ Os livros
sgo iguais as caravanas.

     O imenso grupo de homens e animais comezou a andar mais rbpido. Aljm do
silkncio durante o dia, as noites ­ quando as pessoas costumavam  se  reunir
para  conversar  em  torno   das  fogueiras  ­  comezaram  a  ficar   tambjm
silenciosas. Certo dia o Lnder  da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para ngo chamar a atenzgo sobre a caravana.
     Os viajantes passaram  a  fazer uma  roda  de animais, e dormiam  todos
juntos  no centro, tentando  se  proteger do frio noturno. O Lnder  passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
     Numa daquelas  noites o Inglks ngo conseguiu dormir.  Chamou o rapaz  e
comezaram  a  passear pelas dunas em  volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao Inglks toda a sua histuria.
     O  Inglks ficou fascinado com a loja que havia progredido depois  que o
rapaz comezou a trabalhar nela.
     ­ Este j o princnpio que move todas  as coisas ­ disse. ­ Na Alquimia j
chamado  de Alma  do Mundo. Quando vock deseja algo de  todo  o seu corazgo,
vock estb mais pruximo da Alma do Mundo. Ela j sempre uma forza positiva.
     Disse tambjm que isto ngo era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tambjm uma alma, ngo importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
     ­ Tudo  que  estb sob e  sobre a  face da Terra  se transforma  sempre,
porque  a Terra  estb  viva;  e  tem  uma  alma. Somos  parte desta  Alma, e
raramente sabemos que ela  sempre trabalha em  nosso  favor.  Mas  vock deve
entender que, na loja  dos cristais, atj mesmo  os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
     O  rapaz ficou em silkncio  por algum tempo, olhando a lua  e  a  areia
branca.
     ­ Tenho  visto a caravana  caminhando  atravjs  do deserto ­ disse, por
fim. ­ Ela e o deserto falam a mesma lnngua, e por  isso ele permite que ela
o  atravesse.  Vai testar  cada passo  seu,  para  ver se estb  em  perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegarb atj o obsis.
     "Se um de  nus  chegasse aqui com muita coragem, mas  sem entender esta
lnngua, ia morrer no primeiro dia."
     Continuaram olhando a lua, juntos.
     ­ Esta j a magia dos sinais ­ continuou o rapaz. ­ Tenho  visto como os
guias  lkem os sinais  do deserto, e como a alma da  caravana conversa com a
alma do deserto.
     Depois de algum tempo, foi a vez do Inglks falar.
     ­ Preciso prestar mais atenzgo a caravana ­ disse, por fim.
     ­ E eu preciso ler seus livros ­ falou o rapaz.






     Eram livros estranhos. Falavam em  mercŪrio, sal,  draghes e reis,  mas
ele ngo  conseguia entender  nada. Entretanto, havia uma  idjia  que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestazhes de uma
coisa su.
     Num  dos livros  ele descobriu que o texto mais importante  da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
     ­ J a Tbboa da Esmeralda ­ falou o Inglks, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
     ­ E entgo, para que tantos livros?
     ­  Para entender estas linhas ­ respondeu  o  Inglks, sem  estar  muito
convencido da prupria resposta.

     O livro que mais interessou ao rapaz contava a histuria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboraturios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos  anos,  terminaria  se libertando  de  todas as  suas  propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa Žnica
permitia que  os  alquimistas  entendessem qualquer  coisa  sobre a  face da
Terra, porque ela era  a linguagem pela qual as  coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de  Grande Obra ­  que era  composta  de  uma parte
lnquida e uma parte sulida.
     ­ Ngo basta  observar os homens e  os  sinais, para  se  descobrir esta
linguagem? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Vock tem mania de simplificar tudo ­ respondeu o Inglks irritado. ­ A
Alquimia j um trabalho sjrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
     O  rapaz descobriu que  a  parte lnquida da Grande Obra era chamada  de
Elixir da Longa  Vida,  e curava todas as  doenzas, aljm  de  evitar  que  o
alquimista ficasse velho. E a parte sulida era camada de Pedra Filosofal.
     ­  Ngo j fbcil  descobrir a  Pedra  Filosofal  ­  disse o Inglks. ­  Os
alquimistas ficavam  muitos anos nos  laboraturios,  olhando aquele fogo que
purificava os metais.  Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabezas iam
perdendo todas as  vaidades do  mundo. Entgo, um belo dia, descobriam que  a
purificazgo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
     O rapaz se lembrou do  Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom  limpar seus vasos,  para que ambos  se libertassem tambjm dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de  que a Alquimia poderia  ser
aprendida na vida dibria.
     ­ Aljm disso ­  falou o Inglks ­ a  Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante.  Uma   pequena  lasca  dela  j  capaz   de  transformar  grandes
quantidades de metal em ouro.
     A  partir  desta  frase, o  rapaz  ficou interessadnssimo  em Alquimia.
Pensava que, com um  pouco  de pacikncia, poderia transformar  tudo em ouro.
Leu  a  vida de vbrias  pessoas que  tinham  conseguido:  Helvetius,  Elias,
Fulcanelli, Geber.  Eram histurias fascinantes: todos estavam  vivendo atj o
fim sua  Lenda  Pessoal.  Viajavam, encontravam  sbbios,  faziam milagres na
frente dos incrjdulos, possunam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.


     Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente  perdido. Eram apenas desenhos,  instruzhes  em cudigo, textos
obscuros.


     ­  Por que eles falam tgo difncil? ­ perguntou  certa noite ao  Inglks.
Notou tambjm que o Inglks  andava  meio aborrecido e sentindo  falta de seus
livros.
     ­  Para que su os que tkm  responsabilidade de entender  que entendam ­
disse ele.  ­ Imagine  se  todo mundo sansse  transformando chumbo em  ouro.
Daqui a pouco o ouro ngo ia valer nada.
     "Su os persistentes, su aqueles  que pesquisam muito, j que conseguem a
Grande  Obra. Por  isso  estou  no  meio  deste deserto.  Para  encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cudigos".
     ­ Quando foram escritos estes livros? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Hb muitos sjculos atrbs.
     ­ Naquela jpoca ngo havia imprensa ­ insistiu o  rapaz. Ngo havia jeito
de todo mundo tomar  conhecimento  da Alquimia.  Por  que esta linguagem tgo
estranha, cheia de desenhos?
     O Inglks  ngo respondeu nada. Disse que hb vbrios dias estava prestando
atenzgo  a caravana,  e que ngo conseguia descobrir nada de  novo.  A  Ūnica
coisa que tinha notado era que os comentbrios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.


     Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao Inglks.
     ­  Entgo,  aprendeu   muita  coisa?  ­  perguntou  o  outro,  cheio  de
expectativa.  Estava precisando  de algujm  com quem pudesse  conversar para
esquecer o medo da guerra.
     ­  Aprendi  que  o  mundo tem uma  Alma,  e  quem entender  esta  Alma,
entenderb a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
     "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sgo tgo simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
     O Inglks ficou decepcionado. Os anos de estudo, os snmbolos mbgicos, as
palavras   difnceis,  os   aparelhos  de  laboraturio,   nada  disso   havia
impressionado  o  rapaz.  "Ele  deve  ter  uma  alma primitiva  demais  para
compreender isto", apensou.
     Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
     ­ Volte para sua caravana ­ disse. ­ Ela tampouco  me  ensinou qualquer
coisa.
     O rapaz voltou  a contemplar o silkncio do deserto e a areia  levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira  dele ngo  j a minha, e  minha maneira  ngo  j a  dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".




     A caravana  comezou  a viajar  dia  e  noite . A toda hora apareciam os
mensageiros  encapuzados,  e o cameleiro ­ que  haviam se  tornado  amigo do
rapaz  ­ explicou que a guerra entre os  clgs  havia  comezado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao obsis.
     Os animais estavam  exaustos, e os homens cada vez  mais silenciosos. O
silkncio  era mais terrnvel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo ­ que antes ngo passava de um relincho de  camelo ­ agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invasgo.
     O cameleiro, porjm, parecia ngo  se impressionar muito com  a ameaza de
guerra.
     ­ Estou vivo ­ disse ao  rapaz, enquanto comia  um prato de  tvmaras na
noite sem fogueiras  e sem lua. ­ Enquanto estou comendo, ngo fazo nada aljm
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, serb
um dia tgo bom para morrer como qualquer outro.
     "Porque ngo vivo  nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele  j  o  que me interessa.  Se vock puder permanecer sempre no
presente,  entgo  serb um  homem feliz.  Vai  perceber que no deserto existe
vida, que  o cju tem estrelas,  e  que  os guerreiros lutam porque  isto faz
parte da raza humana. A  vida serb uma festa, um grande festival, porque ela
j sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
     Duas noites depois, quando  se preparava para  dormir, o rapaz olhou em
direzgo ao astro  que seguiam durante a noite. Achou que o  horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
     ­ J o obsis ­ disse o cameleiro.
     ­ E porque ngo chegamos lb imediatamente?
     ­ Porque precisamos dormir.


     O rapaz abriu os olhos  quando o  sol  comezava  a surgir no horizonte.
Diante  dele,  onde  as pequenas estrelas  haviam  estado  durante  a noite,
estendia-se uma  fila interminbvel de tamareiras, cobrindo toda a frente  do
deserto.
     ­ Conseguimos! ­ disse o Inglks, que tambjm tinha acabado de acordar.
     O rapaz, porjm, mantinha-se calado.  Aprendera o silkncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar atj as  Pirvmides,  e algum dia aquela manhg seria  apenas
uma lembranza. Mas agora  ela  era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro,  e ele  estava procurando vivk-lo  com as  lizhes do seu
passado  e os  sonhos  do seu futuro. Um dia, aquela  visgo  de milhares  de
tamareiras  seria  apenas  uma  lembranza.  Mas  para  ele,  neste  momento,
significava sombra, bgua, e um refŪgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo  podia se  transformar em perigo,  uma  fila de  tamareiras  podia
significar um milagre.
     "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.




     "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambjm", pensou o
Alquimista, enquanto  via chegar centenas de pessoas e  animais ao Obsis. As
pessoas  gritavam  atrbs  dos  recjm-chegados, a  poeira  encobria o sol  do
deserto,  e  as  crianzas  pulavam de  excitazgo  ao  ver  os  estranhos.  O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do Lnder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
     Mas nada daquilo interessava ao  Alquimista. Jb havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o Obsis  e o  deserto  permaneciam o  mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa  do  vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crianza.
Mesmo  assim, ngo conseguia  conter  no fundo  do  seu  corazgo  um pouco da
alegria  de  vida que  todo viajante experimentava  quando,  depois de terra
amarela  e cju  azul, o verde das tamareiras aparecia diante de  seus olhos.
"Talvez Deus  tenha criado o deserto para que  o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
     Depois  resolveu  concentrar-se  em assuntos mais  prbticos.  Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia  ensinar parte de seus segredos.
Os sinais  lhe haviam contado isto. Ainda ngo conhecia  este homem, mas seus
olhos experimentados o  reconheceriam  quando  o visse.  Esperava que  fosse
algujm tgo capaz como seu aprendiz anterior.
     "Ngo sei  porque estas coisas  tem que  ser  transmitidas de  boca para
ouvido",  pensava ele.  Ngo era exatamente  porque as  coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
     Ele su conhecia uma explicazgo para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim  porque elas  seriam feitas de  Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
     Porque  as pessoas se fascinam com  pinturas e  palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.






     Os recjm-chegados  foram trazidos imediatamente  a  presenza dos chefes
tribais  de Al-Fayoum.  O rapaz ngo podia acreditar no que estava vendo:  ao
invjs  de  um  pozo cercado de algumas palmeiras ­ como havia lido certa vez
num livro  de histuria ­ o obsis era  muito maior do  que  vbrias aldeias da
Espanha. Tinha  trezentos pozos, cinq'enta mil  tamareiras, e muitas  tendas
coloridas espalhadas entre elas.
     ­ Parece  as  Mil  e  Uma  Noites  ­ disse  o Inglks,  impaciente  para
encontrar-se logo com o Alquimista.
     Foram cercados logo pelas crianzas, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam  saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e  pedras que os
mercadores haviam trazido. O silkncio do  deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem sando de  um
mundo espiritual, para estarem de novo entre  os homens. Estavam contentes e
felizes.
     Apesar  das  precauzhes do dia anterior, o cameleiro explicou ao  rapaz
que os obsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros,  porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crianzas. E haviam obsis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os obsis como cidades de refŪgio.
     O Lnder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e comezou a
dar as instruzhes. Iam permanecer ali atj que a guerra entre os clgs tivesse
terminada.   Como  eram  visitantes,   deviam  compartilhar  as  tendas  com
habitantes  do  obsis,  que  lhes  dariam   seus  melhores  lugares.  Era  a
hospitalidade  da  Lei.  Depois  pediu que todos,  inclusive  seus  pruprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
     ­ Sgo  as  regras da  Guerra  ­  explicou o  Lnder  da Caravana.  Desta
maneira, os obsis ngo poderiam abrigar exjrcitos ou guerreiros.
     Para  surpresa  do  rapaz,  o Inglks tirou  de  seu  casaco um revulver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
     ­ Para que um revulver? ­ perguntou.
     ­  Para  aprender  a confiar  nos homens ­ respondeu o  Inglks.  Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
     O rapaz, porjm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as  coisas se tornavam difnceis.  Ngo funcionava mais aquilo
que  o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistkncia  e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele ngo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
     "Deus colocou no meu caminho", pensou  o rapaz, surpreso consigo mesmo.
Atj aquele momento considerava os sinais como uma coisa  do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo  como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha  pensado  que  esta  era uma  linguagem que Deus  estava  usando  para
mostrar-lhe o que devia fazer.
     "Ngo fique impaciente", repetiu o rapaz para  si  mesmo. "Como disse  o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".



     No primeiro dia todos dormiram de cansazo, inclusive o Inglks. O  rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de  idade quase
igual a sua. Eram gente do  deserto, e  queriam saber histurias  das grandes
cidades.
     O  rapaz falou  de  sua  vida  como pastor, e ia comezar  a contar  sua
experikncia na loja de cristais, quando o Inglks entrou na tenda.
     ­ Procurei-o a manhg  inteira ­  disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. ­ Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
     Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente  das outras pessoas  do obsis, e em sua tenda era muito
provbvel que um forno estivesse sempre  aceso. Andaram bastante, atj ficarem
convencidos que o obsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
     ­  Perdemos  quase  o dia inteiro ­  disse o  Inglks, sentando-se com o
rapaz perto de um dos pozos do obsis.
     ­ Talvez seja melhor perguntarmos ­ disse o rapaz.
     O Inglks  ngo queria  contar aos outros sua presenza no Obsis,  e ficou
bastante  indeciso. Mas  acabou  concordando e  pediu ao  rapaz, que  falava
melhor o brabe,  para  fazer isto. O rapaz  se  aproximou  de uma mulher que
havia chegado no pozo para encher de bgua um saco de pele de carneiro.
     ­ Boa  tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um  Alquimista neste
obsis ­ perguntou o rapaz.
     A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, porjm, avisou ao rapaz que ngo deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque  eram  mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradizgo.
     O  Inglks ficou decepcionadnssimo. Tinha  feito  toda a  sua viagem por
nada. O rapaz tambjm ficou triste; seu companheiro tambjm estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando algujm faz isto, o Universo todo se esforza para
que a  pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele ngo podia estar
enganado.
     ­ Eu  nunca tinha ouvido falar antes  de alquimistas ­ disse o rapaz. ­
Sengo tentaria ajudb-lo.
     Alguma coisa brilhou nos olhos do Inglks.
     ­ J  isto! Talvez ningujm aqui saiba o que  j um  alquimista!  Pergunte
pelo homem que cura todas as doenzas da aldeia!
     Vbrias mulheres vestidas de preto vieram buscar bgua no pozo, e o rapaz
ngo conversou com elas, por mais que o Inglks  insistisse. Atj que um  homem
se aproximou.
     ­ Conhece algujm que cura as doenzas da aldeia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Allah cura todas as doenzas, ­ disse o homem, visivelmente  apavorado
com os estrangeiros. ­ Vocks estgo em busca de bruxos.
     E depois de dizer alguns versnculos do Alcorgo, seguiu seu caminho.
     Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
     ­ Por que vocks querem conhecer este tipo de homem? ­ respondeu o brabe
com outra pergunta.
     ­ Porque  meu amigo  viajou  muitos  meses para  encontrb-lo ­ disse  o
rapaz.
     ­ Se este homem existe no  obsis, deve  ser  muito  poderoso ­  disse o
velho, depois  de  pensar por  alguns  instantes. ­ Nem  os  chefes  tribais
conseguiriam vk-lo quando precisam. Su quando ele assim determinasse.


     "Esperem o final da guerra. E entgo partam com a caravana. Ngo procurem
entrar na vida do obsis", concluiu, se afastando.
     Mas o Inglks ficou exultante. Estavam na pista certa.
     Finalmente surgiu uma moza que  ngo estava vestida de negro.  Trazia um
cvntaro  no  ombro,  e a cabeza  coberta  com  um  vju,  mas  tinha  o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.

     Entgo foi como se o tempo parasse, e a  Alma do Mundo surgisse com toda
a forza  diante  do rapaz.  Quando ele olhou seus  olhos negros, seus lbbios
indecisos  entre  um  sorriso  e  o  silkncio,  ele  entendeu a  parte  mais
importante e mais sbbia da Linguagem que  o  mundo  falava,  e que todas  as
pessoas  da terra eram  capazes de  entender  em  seus  corazhes. E isto era
chamado de  Amor, uma  coisa  mais antiga que  os  homens  e  que  o pruprio
deserto,  e que no entanto ressurgia  sempre com a mesma forza onde quer que
dois pares de  olhos  se  cruzassem como se  cruzaram aqueles  dois pares de
olhos diante de um  pozo. Os lbbios finalmente resolveram dar  um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou  sem saber durante  tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado  nas ovelhas e nos  livros, nos cristais e no
silkncio do deserto.
     Ali  estava a pura  linguagem  do  mundo,  sem  explicazhes,  porque  o
Universo  ngo precisava de  explicazhes para continuar seu caminho no espazo
sem  fim.  Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua  vida, e  sem  nenhuma necessidade  de  palavras, ela devia
saber disto tambjm.  Tinha mais certeza  disto do que  de  qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer  a pessoa e ter dinheiro antes  de se casar.  Quem
dizia isto talvez  jamais tivesse conhecido a  linguagem  universal,  porque
quando  se  mergulha nela, j fbcil entender  que sempre existe  no mundo uma
pessoa que espera  a  outra,  seja no  meio de um  deserto, seja no meio das
grandes cidades.  E  quando  estas  pessoas  se  cruzam,  e  seus  olhos  se
encontram, todo  o passado e todo o futuro perde qualquer  importvncia, e su
existe  aquele momento,  e aquela certeza  incrnvel de que  todas  as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma Mgo.  A Mgo que  desperta o Amor, e
que  fez  uma alma gkmea  para  cada pessoa  que trabalha, descansa  e busca
tesouros debaixo  do sol. Porque  sem isto ngo haveria qualquer sentido para
os sonhos da raza humana.
     "Maktub", pensou o rapaz.

     O Inglks levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
     ­ Vamos, pergunte a ela!
     O rapaz se aproximou da moza. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tambjm.
     ­ Como vock se chama? ­ perguntou.
     ­ Me chamo Fbtima ­ disse a moza, olhando para o chgo.
     ­ J um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
     ­  J  o  nome da  filha do Profeta ­  disse Fbtima. ­ Os guerreiros  os
levaram para lb.
     A moza delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao  seu lado o Inglks
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doenzas.
     ­ J um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ­ ela falou.
     Os  djins eram os demfnios. E a moza apontou para  o  sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.


     Depois encheu seu cvntaro e partiu. O Inglks partiu tambjm, em busca do
Alquimista. E o  rapaz  ficou por  muito tempo  sentado  ao  lado  do  pozo,
entendendo  que  algum  dia  o Levante havia deixado em seu rosto o  perfume
daquela mulher, e que jb a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.






     No dia seguinte o rapaz voltou para  o pozo,  para esperar a moza. Para
sua surpresa, encontrou lb o Inglks, olhando pela primeira vez o deserto.
     ­ Esperei a tarde e a noite ­ disse o Inglks. ­ Ele chegou junto com as
primeiras estrelas.  Eu lhe contei o  que  estava  procurando. Entgo  ele me
perguntou se jb havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
     "Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: vb tentar".
     O rapaz ficou quieto. O  Inglks havia viajado tanto para ouvir o que jb
sabia. An ele  se  lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao  velho rei pela
mesma razgo.
     ­ Entgo tente ­ disse para o Inglks.
     ­ J isto que vou fazer. E vou comezar agora.
     Pouco depois que o Inglks saiu, Fbtima chegou para apanhar bgua com seu
cvntaro.
     ­ Vim dizer-lhe uma coisa simples  ­ falou o rapaz. ­ Eu quero que vock
seja minha mulher. Eu te amo.
     A moza deixou que seu cvntaro derramasse a bgua.
     ­  Vou  esperb-la todos os  dias aqui. Cruzei o deserto  em busca de um
tesouro que se encontra perto  das pirvmides.  A  guerra foi  para  mim  uma
maldizgo. Agora ela j uma bknzgo, porque me deixa perto de vock.
     ­ A guerra um dia vai acabar ­ disse a moza.
     O rapaz olhou as tamareiras do obsis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. Fbtima era mais importante que o tesouro.
     ­ Os guerreiros buscam seus  tesouros ­ disse a moza, como se estivesse
adivinhando o  pensamento  do rapaz. ­  E as mulheres do deserto tkm orgulho
dos seus guerreiros.
     Depois tornou a encher seu cvntaro, e foi embora.

     Todos  os dias o rapaz ia para o pozo esperar Fbtima. Contou-lhe de sua
vida de pastor,  do rei, da loja de  cristais. Ficaram amigos, e com excezgo
quinze minutos que passava  com ela, o resto  do dia custava infinitamente a
passar. Quando  jb estava  hb  quase um  mks no obsis, o  Lnder  da Caravana
convocou a todos para uma reunigo.
     ­ Ngo sabemos quando a guerra vai acabar, e ngo podemos seguir viagem ­
disse.
     ­ Os combates devem durar por  muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os  exjrcitos. Ngo  j  uma guerra  entre bons e maus. J uma  guerra
entre forzas  que  lutam pelo  mesmo  poder, e quando este  tipo  de batalha
comeza, demora mais que as outras ­ porque Allah estb dos dois lados.
     As pessoas se  dispersaram.  O rapaz tornou a  encontrar-se  com Fbtima
aquela tarde, e contou da reunigo.
     ­ No segundo dia que nos encontramos ­ disse Fbtima ­ vock me falou  do
seu  amor. Depois me  ensinou  coisas belas, como  a  Linguagem e a Alma  do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vock.
     O rapaz ouvia  sua  voz, e achava  mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.


     ­ Faz  muito tempo, que estive aqui neste pozo esperando por vock.  Ngo
consigo me lembrar  do meu  passado, da  Tradizgo, da maneira  que os homens
esperam  que se comportem as mulheres do deserto. Desde crianza  eu  sonhava
que o  deserto  ia me trazer o maior presente  de minha vida. Este  presente
chegou afinal, e j vock.
     O rapaz  pensou  em  tocar sua mgo. Mas  Fbtima  segurava as  alzas  do
cvntaro.
     ­ Vock me falou dos  seus sonhos,  do velho rei, e do  tesouro. Vock me
falou dos sinais. Entgo ngo tenho  medo de nada,  porque foram estes  sinais
que me trouxeram vock.  E eu  sou parte do seu sonho, da sua Lenda  Pessoal,
como vock costuma chamar.
     "Por isso quero que siga em  direzgo  ao que  veio buscar. Se tiver que
esperar o final da  guerra, muito  bem. Mas se tiver que seguir antes, vb em
direzgo a sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto  permanece no
mesmo. Assim serb com nosso amor.
     "Maktub" ­ disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vock voltarb um dia".

     O rapaz saiu  triste do  encontro com Fbtima. Ele se  lembrava de muita
gente que havia  conhecido.  Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas  de  que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
     No dia seguinte ele contou tudo isto a Fbtima.
     ­  O deserto leva nossos homens e nem  sempre os traz de volta ­  disse
ela. ­  Entgo nos acostumamos com  isto. E eles passam a existir nas  nuvens
sem chuva,  nos animais que se escondem entre  as pedras, na  bgua  que  sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
     "Alguns  retornam. E  entgo  todas as  outras mulheres  ficam  felizes,
porque  os  homens que elas  esperam  tambjm podem voltar  um dia.  Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter  tambjm  uma
pessoa para esperar.
     "Sou  uma  mulher do deserto e me  orgulho disto.  Quero que  meu homem
tambjm caminhe livre como o  vento que move as dunas. Quero tambjm poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na bgua."

     O rapaz foi procurar o  Inglks. Queria  contar-lhe  sobre Fbtima. Ficou
surpreso quando  viu que o  Inglks havia construndo um pequeno forno ao lado
de  sua tenda. Era  um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
Inglks alimentava o fogo com lenha, e olhava  o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
     ­ Esta j a  primeira fase do  trabalho ­  disse o  Inglks.  ­ Tenho que
separar  o  enxofre impuro. Para isto, nao posso ter  medo  de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra atj hoje.  J agora
que estou comezando o que podia ter comezado hb dez anos atrbs. Mas me sinto
feliz de ngo ter esperado vinte anos para isto.
     E continuou a alimentar o  fogo e  a olhar o deserto. O  rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, atj que o deserto comezou a ficar rosado com a luz
do entardecer. Entgo ele sentiu uma imensa vontade de ir atj lb, para ver se
o silkncio conseguia responder suas perguntas.
     Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras  do  obsis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pjs.
As vezes  encontrava  alguma concha,  e sabia que aquele deserto,  num tempo
remoto,  havia sido um grande mar. Depois  sentou-se  numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia


     na sua frente. Ngo conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas Fbtima era uma mulher do deserto, e se  algujm  podia lhe ensinar  isto,
era o deserto.
     Ficou assim, sem pensar em nada, atj que pressentiu  um movimento sobre
sua  cabeza. Olhando para  o  cju,  viu que eram dois gavihes,  voando muito
alto.
     O  rapaz  comezou a olhar os gavihes, e os desenhos que eles  faziam no
cju. Parecia uma coisa desordenada, entretanto,  tinham algum sentido para o
rapaz.  Apenas ngo conseguia compreender seu significado. Decidiu  entgo que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pbssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
     Comezou  a sentir sono.  Seu  corazgo pediu para que  ngo  dormisse: ao
invjs disto, devia  se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo  nesta  terra faz  sentido, atj  mesmo  o  vfo  de  gavihes", disse.  E
aproveitou para  agradecer  pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
     De repente, um gavigo deu um rbpido mergulho no  cju e atacou o  outro.
Quando  fez este  movimento, o  rapaz  teve  uma  sŪbita e rbpida  visgo: um
exjrcito, de espadas desembainhadas, entrando no obsis. A visgo logo  sumiu,
mas aquilo lhe deixou  sobressaltado. Havia ouvido falar das  miragens, e jb
havia  visto algumas: eram desejos que  se  materializavam  sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele ngo desejava um exjrcito invadindo o obsis.
     Pensou  em esquecer aquilo e  voltar  a sua meditazgo. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cfr-de-rosa e nas  pedras. Mas  alguma coisa em seu
corazgo ngo o deixava quieto.
     "Siga  sempre  os sinais", dissera o velho  rei.  E  o rapaz pensou  em
Fbtima. Lembrou-se do que havia  visto,  e pressentiu que  estava pruximo de
acontecer.
     Com  muita  dificuldade,  saiu  do  transe   em   que  havia   entrado.
Levantou-se,  e comezou  a caminhar  em direzgo  as tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o obsis se transformara em perigo.

     O cameleiro  estava sentado aos pjs de  uma tamareira, tambjm olhando o
pfr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrbs de uma das dunas.
     ­ Um exjrcito se aproxima ­ disse. ­ Tive uma visgo.
     ­ O  deserto enche  de  vishes  o corazgo  de um  homem ­  respondeu  o
cameleiro.
     Mas o rapaz lhe contou dos gavihes: estava olhando seu vfo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
     O  cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que  qualquer coisa  na face da  terra  pode  contar a  histuria de todas as
coisas. Se abrisse  um  livro em qualquer  pbgina,  ou olhasse  as mgos  das
pessoas, ou cartas de baralho, ou vfo dos pbssaros, ou  seja lb o que fosse,
qualquer pessoa  iria encontrar  um lazo  com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, ngo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
     O  deserto  estava  cheio de homens que ganhavam a  vida porque  podiam
penetrar  com facilidade na Alma do  Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos  por  mulheres  e velhos.  Os Guerreiros  raramente  os consultavam,
porque era impossnvel entrar numa batalha  sabendo quando  se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor  da  luta e a emozgo do  desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele


     tivesse escrito, era sempre para o  bem do  homem. Entgo os  Guerreiros
viviam  apenas o  presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham  que  prestar  atenzgo em  muitas coisas:  onde  estava  a  espada do
inimigo,  onde estava seu  cavalo,  qual o  pruximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
     O cameleiro ngo era Guerreiro, e  jb havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
     Atj que um  deles, o  mais velho  (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tgo interessado em saber o futuro.
     ­  Para que possa fazer as coisas ­ respondeu o  cameleiro. ­ E mudar o
que ngo gostaria que acontecesse.
     ­ Entgo deixarb de ser seu futuro ­ respondeu o adivinho.
     ­ Talvez entgo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virgo.
     ­ Se forem coisas  boas,  isto serb uma  agradbvel  surpresa ­ disse  o
adivinho. ­ Se forem coisas ruins, vock  estarb  sofrendo muito  antes delas
acontecerem.
     ­ Quero saber o futuro  porque sou  um homem ­ disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em funzgo do seu futuro.
     O adivinho  ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no  jogo
de varetas, que eram atiradas no chgo e interpretadas da maneira  que canam.
Naquele  dia ele ngo jogou as varetas.  Envolveu-as  num  lenzo  e  tornou a
colocar no bolso.
     ­ Ganho a vida  adivinhando o futuro das pessoas ­ disse ele. ­ Conhezo
a cikncia das varetas, e sei como utilizb-la para penetrar neste espazo onde
tudo  estb  escrito.  Ali posso  ler  o passado,  descobrir  o  que  jb  foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
     "Quando as  pessoas me consultam, eu  ngo estou  lendo o  futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele su o revela  em
circunstvncias  extraordinbrias.  E como  consigo adivinhar o  futuro? Pelos
sinais  do presente.  No  presente j  que  estb  o segredo; se vock  prestar
atenzgo no presente, poderb melhorb-lo. E se vock melhorar o presente, o que
acontecerb depois tambjm serb melhor.  Esqueza o futuro e  viva cada  dia de
sua vida nos  ensinamentos da Lei, e na confianza de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
     O cameleiro quis saber quais as circunstvncias em que Deus permitia ver
o futuro:
     ­ Quando  Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro  raramente, e  por
uma Ūnica razgo: j um futuro que foi escrito para ser mudado.

     Deus  tinha  mostrado um futuro  ao rapaz,  pensou  o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
     ­  Vb  falar com os chefes  tribais  ­ disse  o  cameleiro. ­ Conte dos
guerreiros que se aproximam.
     ­ Eles vgo rir de mim.
     ­ Sgo homens do deserto,  e os homens do deserto estgo  acostumados com
os sinais.
     ­ Entgo jb devem saber.
     ­ Ngo estgo preocupados  com  isto. Acreditam que se tiverem que  saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dirb isto. Jb aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa j vock.
     O rapaz pensou em Fbtima. E resolveu ir ver os chefes tribais.




     ­ Trago sinais  do deserto ­ disse  ao  guarda que ficava  na  porta da
imensa tenda branca no centro do obsis. ­ Quero ver os chefes.
     O guarda ngo disse nada. Entrou e  demorou-se muito  lb  dentro. Depois
saiu com um brabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
     A noite caiu. Entraram e sanram vbrios brabes  e mercadores. Aos poucos
as fogueiras  foram se apagando, e  o  obsis comezou a  ficar tgo silencioso
como o deserto. Su a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo,  o  rapaz pensava em Fbtima,  ainda  sem entender a  conversa daquela
tarde.
     Finalmente,  depois de muitas horas  de espera, o  guarda mandou  que o
rapaz entrasse.
     O que viu deixou-o  extasiado. Nunca  poderia imaginar  que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela.  O chgo estava coberto com os mais
belos  tapetes que jb  havia  pisado,  e do teto  pendiam lustres  de  metal
amarelo  trabalhado,  coberto  de  velas acessas.  Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicnrculo, descansando seus brazos e pernas
em  almofadas de  seda com  ricos  bordados.  Criados  entravam e  sanam com
bandejas de prata  cheias  de especiarias e chb.  Alguns  se encarregavam de
manter acesas as  brasas dos  narguiljs. Um suave  perfume  de fumo enchia o
ambiente.
     Haviam  oito  chefes,  mas o  rapaz  logo  percebeu  quem  era  o  mais
importante:  um  brabe  vestido  de  branco  e ouro,  sentado no  centro  do
semicnrculo.  Ao  seu  lado estava  o jovem  brabe com quem tinha conversado
antes.
     ­ Quem j o estrangeiro que fala de sinais?  ­ perguntou  um dos chefes,
olhando para ele.
     ­ Eu sou ­ respondeu. E contou o que havia visto.
     ­ E  por que o deserto ia contar  isto a um estranho, quando  sabe  que
estamos hb vbrias gerazhes aqui? ­ disse outro chefe tribal.
     ­ Porque meus olhos ainda ngo se acostumaram com o  deserto ­ respondeu
o rapaz. ­  E  eu posso  ver  coisas  que  os  olhos habituados  demais  ngo
conseguem mais ver.
     "J porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas ngo falou
nada, porque os brabes ngo acreditam nestas coisas.
     ­  O  Obsis  j um  terreno neutro. Ningujm  ataca um  Obsis  ­ disse um
terceiro chefe.
     ­ Eu conto apenas o que vi. Se ngo quiserem acreditar, ngo fazam nada.
     Um completo  silkncio  abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto brabe que o rapaz  ngo
entendia,  mas  quando ele  fez  menzgo  de  ir embora, um guarda disse para
ficar.  O  rapaz comezou a sentir  medo; os sinais diziam que  havia  alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
     De  repente,  o  velho  que estava  no  centro  deu  um  sorriso  quase
imperceptnvel, e o rapaz  tranq'ilizou-se.  O velho ngo havia participado da
discussgo, e ngo  dissera uma  palavra  atj aquele momento.  Mas o rapaz  jb
estava acostumado com a  Linguagem do Mundo,  e pode sentir uma vibrazgo  de
Paz cruzando a tenda de ponta  a ponta. Sua  intuizgo dizia que havia  agido
corretamente em vir.


     A  discussgo  acabou. Ficaram em  silkncio  por algum tempo,  ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio  e
distante.
     ­  Hb dois mil anos,  numa terra distante, jogaram num  pozo e venderam
como  escravo um homem que  acreditava em sonhos ­ disse o  velho.  ­ Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram  para o Egito. E todos nus sabemos que,
quem acredita em sonhos, tambjm sabe interpretb-los.
     "Embora nem sempre consiga realizb-los", pensou  o  rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
     ­  Por causa dos sonhos do farau com vacas magras e  gordas, este homem
livrou o Egito da fome.  Seu nome era Josj.  Era tambjm um  estrangeiro numa
terra estrangeira, como vock, e devia ter mais ou menos a sua idade.
     O silkncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
     ­ Sempre seguimos a Tradizgo. A Tradizgo salvou o Egito da fome naquela
jpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradizgo ensina  como os homens
devem atravessar o deserto e  casar suas filhas. A Tradizgo diz que um Obsis
j um terreno neutro, porque ambos os lados tem Obsis, e sgo vulnerbveis.
     Ningujm disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
     ­ Mas a Tradizgo diz tambjm para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
     O velho fez um  sinal e todos os brabes se levantaram. A reunigo estava
para terminar. Os narguiljs foram  apagados, e  os guardas  se  colocaram em
posizgo de sentido. O rapaz preparou-se para sair,  mas o  velho falou ainda
mais uma vez:
     ­ Amanhg  nus vamos romper um acordo que diz que ningujm no  obsis pode
portar  armas. Durante o dia inteiro  aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer  no  horizonte,  os  homens  me devolvergo as armas.  Para  cada  dez
inimigos mortos, vock receberb uma moeda de ouro.
     "Entretanto, as armas ngo podem sair  do seu lugar sem experimentarem a
batalha. Sgo caprichosas  como o deserto,  e se as acostumamos com  isto, da
pruxima vez podem  ter preguiza de disparar.  Se nenhuma  delas  tiver  sido
utilizada amanhg, pelo menos uma serb usada em vock."




     O obsis estava  iluminado  apenas pela  lua  cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada atj sua tenda, e ele comezou a andar.
     Estava  assustado  com  tudo que havia  acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do  Mundo, e o prezo  por  acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia  em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua  Lenda  Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhg era
tgo bom  como  morrer em  qualquer outro  dia.  Todo dia  era feito para ser
vivido  ou  para  abandonar  o  mundo. Tudo dependia apenas de  uma palavra:
"Maktub".
     Caminhou em silkncio. Ngo estava arrependido. Se morresse amanhg, seria
porque Deus  ngo  estava com  vontade de mudar o  futuro.  Mas teria morrido
depois  de  haver cruzado  o  estreito, trabalhado em uma  loja de cristais,
conhecido  o  silkncio  do  deserto  e  os olhos  de  Fbtima.  Tinha  vivido
intensamente cada um dos seus dias,  desde que havia sando de casa, hb tanto
tempo atrbs. Se morresse amanhg, seus  olhos teriam visto  muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
     De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que ngo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu  a lua. Na sua frente, um enorme  cavalo branco empinou  soltando  um
relincho aterrador.
     O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu  um pavor que jamais havia sentido  antes.  Em  cima do cavalo
estava  um  cavaleiro todo  vestido  de  negro,  com um falcgo em seu  ombro
esquerdo. Usava um turbante e um lenzo que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos  de fora. Parecia  o mensageiro do deserto, mas sua presenza
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
     O  estranho  cavaleiro puxou a enorme espada curva  que trazia presa  a
sela. O azo brilhou com a luz da lua.
     ­ Quem ousou ler o vfo  dos gavihes?  ­ perguntou com uma voz tgo forte
que pareceu ecoar entre as cinq'enta mil tamareiras do Al-fayoum.
     ­  Eu ousei  ­ disse o  rapaz.  Lembrou-se imediatamente da  imagem  de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco  com  os infijis sob as patas.  Era
exatamente assim. Su que agora a situazgo estava invertida.
     ­ Eu  ousei ­ repetiu  o rapaz, e abaixou a cabeza para receber o golpe
da espada. ­ Muitas vidas sergo salvas, porque vocks ngo contavam com a Alma
do Mundo.
     A espada, porjm,  ngo  desceu rbpido.  A mgo do  estranho foi abaixando
lentamente, atj  que a ponta  da lvmina  tocou na testa  do  rapaz. Era  tgo
afiada que saiu uma gota de sangue.
     O cavaleiro estava  completamente imuvel. O rapaz tambjm. Ngo pensou um
minuto  sequer em fugir. Dentro  do seu corazgo,  uma estranha alegria tomou
conta dele: ia  morrer por  sua Lenda Pessoal. E  por Fbtima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim.  Ali  estava  o  Inimigo,  e por  causa  disto  ele  ngo
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui  a
pouco ele estaria  fazendo parte dela. E amanhg  o Inimigo faria  parte dela
tambjm.
     O estranho, porjm, apenas mantinha a espada em sua testa.
     ­ Por que vock leu o vfo dos pbssaros?
     ­  Li apenas  o que os  pbssaros queriam contar. Eles  querem  salvar o
obsis, e vocks morrergo. O obsis tem mais homens que vocks.
     A espada continuava em sua testa.


     ­ Quem j vock para mudar o destino de Allah?
     ­ Allah fez os exjrcitos, e fez tambjm os  pbssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pbssaros. Tudo foi escrito  pela mesma  Mgo,  ­ disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
     O estranho  finalmente retirou a  espada  da  testa. O rapaz  sentiu um
certo alnvio. Mas ngo podia fugir.
     ­ Cuidado com  as adivinhazhes ­ disse  o estranho. ­  Quando as coisas
estgo escritas, ngo hb como evitb-las.
     ­  Apenas vi  um exjrcito ­ disse o rapaz. ­ Ngo  vi o resultado de uma
batalha.
     O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a  espada  na
sua mgo.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
     ­ Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vock ngo entenderb nunca.
     O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcgo no seu  ombro deu um
grito estranho. O rapaz comezou a relaxar.
     ­ Precisava testar sua coragem ­ disse o estranho. ­ A coragem j  o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
     O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
     ­  J preciso  ngo  relaxar  nunca, mesmo  tendo  chegado  tgo  longe  ­
continuou ele.  ­ J preciso amar o deserto, mas jamais confiar  inteiramente
nele. Porque o deserto j uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
     Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
     ­ Se os guerreiros chegarem, e sua cabeza ainda estiver sobre o pescozo
depois que o sol morrer, me procure ­ disse o estranho.
     A mesma mgo que havia segurado a espada, empunhou  um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
     ­ Onde vock mora? ­ gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
     A mgo com chicote apontou em direzgo ao sul.
     O rapaz tinha encontrado o Alquimista.






     Na manhg seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que  o  sol chegasse ao topo do cju, quinhentos  guerreiros
apareceram no horizonte.  Os cavaleiros  entraram no obsis pela parte norte;
parecia uma expedizgo de paz,  mas haviam  armas  escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram  perto da  grande tenda  que  ficava  no centro  de
Al-Fayoum, puxaram as  cimitarras  e as  espingardas. E  atacaram uma  tenda
vazia.
     Os homens do obsis cercaram  os  cavaleiros do  deserto.  Em meia  hora
haviam  quatrocentos  e noventa  e  nove  corpos  espalhados  pelo chgo.  As
crianzas estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e ngo viram nada.
As  mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambjm  ngo viram  nada.
Ngo fosse pelos corpos espalhados, o obsis parecia viver um dia normal.
     Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhgo. De tarde ele
foi conduzido diante dos  chefes  tribais,  que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradizgo. O comandante  disse que seus  homens estavam  com fome e
sede,  exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um obsis
para poder recomezar a luta.
     O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradizgo jamais
pode ser rompida. A  Ūnica coisa  que  muda no  deserto sgo as dunas, quando
sopra o vento.
     Depois condenou o comandante a uma  morte sem honra. Ao invjs do azo ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado  numa  tamareira tambjm morta. Seu corpo
balanzou com o vento do deserto.
     O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinq'enta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histuria de Josj no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do Obsis.






     Quando  o sol se pfs por completo, e as primeiras estrelas comezaram  a
aparecer (ngo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em  direzgo  ao  sul. Havia apenas  uma tenda,  e alguns brabes que passavam
diziam que  o  lugar  era  cheio de djins.  Mas o rapaz sentou-se e  esperou
durante muito tempo.
     O Alquimista apareceu quando a lua  jb estava alto no cju.  Trazia dois
gavihes mortos no ombro.
     ­ Aqui estou ­ disse o rapaz.
     ­ Ngo devia  estar ­ respondeu o Alquimista. ­ Ou sua Lenda Pessoal era
chegar atj aqui?
     ­ Existe uma guerra entre os clgs. Ngo j possnvel cruzar o deserto.
     O Alquimista  desceu do seu cavalo,  e fez um sinal  para que  o  rapaz
entrasse com  ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as  outras que havia
conhecido no obsis ­ exceto a grande  tenda central,  que tinha o  luxo  dos
contos de fada. ­ Ele  procurou os aparelhos  e fornos de alquimia, mas  ngo
encontrou  nada. Havia apenas  uns poucos  livros empilhados,  um foggo para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
     ­ Sente-se, que vou preparar um chb  ­ disse o Alquimista.  E comeremos
juntos estes gavihes.
     O rapaz  suspeitou  que  eram os mesmos pbssaros que havia visto no dia
anterior, mas  ngo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um  delicioso cheiro de carne  enchia a tenda. Era melhor que o perfume  dos
narguiljs.
     ­ Por que quis me ver? ­ disse o rapaz.
     ­ Por causa dos sinais ­ respondeu o Alquimista ­ O vento me contou que
vock viria. E que ia precisar de ajuda.
     ­  Ngo sou eu. J o  outro estrangeiro, o  Inglks.  Ele  j que  o estava
buscando.
     ­  Ele tem que encontrar outras coisas antes  de me encontrar. Mas estb
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
     ­ E eu?
     ­ Quando se quer uma coisa,  todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga  realizar seu  sonho ­ disse o  Alquimista, repetindo as palavras do
velho  rei.  O  rapaz entendeu.  Outro  homem estava  no seu  caminho,  para
conduzi-lo atj sua Lenda Pessoal.
     ­ Entgo vock vai me ensinar?
     ­ Ngo. Vock jb sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
direzgo ao seu tesouro.
     ­ Existe uma guerra entre os clgs. ­ repetiu o rapaz.
     ­ Eu conhezo o deserto.
     ­  Jb encontrei meu tesouro. Tenho um camelo,  o dinheiro  das lojas de
cristais,  e  cinq'enta moedas  de ouro.  Posso  ser um homem rico  na minha
terra.
     ­ Mas nada disto estb perto das Pirvmides ­ disse o Alquimista.
     ­ Tenho Fbtima. J um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
     ­ Tambjm ela ngo estb perto das Pirvmides.
     Comeram os  gavihes  em  silkncio. O  Alquimista  abriu  uma  garrafa e
derramou um  lnquido vermelho  no copo do rapaz. Era vinho, um dos  melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.


     ­ O  mal ngo j  o que entra na boca do  homem ­ disse o Alquimista. ­ O
mal j o que sai dela.
     O rapaz comezou  a sentir-se alegre com  o vinho. Mas o  Alquimista lhe
inspirava  medo. Sentaram-se do lado de fora da  tenda, olhando o  brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
     ­ Beba e se distraia um pouco ­ disse o Alquimista, notando que o rapaz
comezava a ficar cada vez mais  alegre.  ­ Repouse como um guerreiro  sempre
repousa antes do combate. Mas ngo esqueza que o seu corazgo estb onde estb o
seu tesouro.  E que  seu tesouro precisa ser encontrado, para  que tudo isto
que vock descobriu no caminho possa fazer sentido.
     "Amanhg  venda   seu  camelo  e  compre  um   cavalo.  Os  camelos  sgo
traizoeiros: andam  milhares de passos, e ngo dgo qualquer sinal de cansazo.
De repente, porjm, ajoelham e morrem. Os cavalos vgo se cansando aos poucos.
E  vock poderb saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a jpoca em que vgo
morrer".


     Na  noite  seguinte  o  rapaz  apareceu  com  um  cavalo  na  tenda  do
Alquimista.  Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcgo no ombro esquerdo.
     ­ Mostre-me  a  vida no  deserto  ­ disse o  Alquimista. ­ Su quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
     Comezaram a caminhar pelas areias, com a lua  ainda brilhando sobre  os
dois. "Ngo sei se vou conseguir encontrar vida  no deserto", pensou o rapaz.
"Ngo conhezo ainda o deserto".
     Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gavihes no  cju; entretanto,
tudo era silkncio e vento.
     ­  Ngo consigo encontrar  vida no  deserto ­ disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas ngo consigo encontrb-la.
     ­ A vida atrai a vida ­ respondeu o Alquimista.
     E  o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rjdeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e  areia. O Alquimista seguia  em silkncio, e o
cavalo do  rapaz  andou  por quase meia-hora.  Jb  ngo  podiam mais  ver  as
tamareiras do obsis, apenas  a lua gigantesca no cju, e as  rochas brilhando
com a cor  prata. De  repente, num lugar  onde  jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
     ­ Aqui existe vida ­ respondeu o rapaz ao  Alquimista. ­ Ngo conhezo  a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
     Desmontaram.  O Alquimista ngo disse nada.  Comezou a olhar  as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou,  e abaixou-se com  todo  cuidado.
Havia um buraco no chgo, entre as pedras;  o Alquimista enfiou a mgo  dentro
do buraco,  e depois enfiou o  brazo atj o ombro.  Alguma coisa se  mexeu lb
dentro, e os olhos do Alquimista ­ ele su podia ver os olhos ­ se encolherem
de esforzo e tensgo.  O  brazo  parecia  lutar com  o que estava  dentro  do
buraco. Mas num salto que  assustou o rapaz, o Alquimista retirou o brazo  e
ficou imediatamente de pj. Sua mgo trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
     O rapaz tambjm  deu um salto, su que  para trbs. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo  rundos e silvos que feriam o silkncio do  deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.


     "Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mgo no buraco, e  jb devia  ter  sido mordido.  Seu rosto, porjm,
estava tranq'ilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglks.
     Jb devia saber como lidar com cobras no deserto.
     O  rapaz viu quando seu companheiro  foi  atj o cavalo e puxou  a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, trazou um cnrculo no chgo  e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
     ­ Pode ficar tranq'ilo ­ disse o Alquimista. ­ Ela ngo vai sair dali. E
vock descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
     ­ Por que isto era tgo importante?
     ­ Porque as Pirvmides estgo cercadas de deserto.
     O rapaz ngo queria ouvir falar nas Pirvmides. Seu corazgo estava pesado
e  triste, desde a  noite anterior. Porque seguir em busca  do  seu tesouro,
significava ter que abandonar Fbtima.
     ­ Vou guib-lo pelo deserto ­ falou o Alquimista.
     ­ Quero ficar no  obsis ­ respondeu  o rapaz. ­  Jb encontrei Fbtima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
     ­ Fbtima j uma mulher do  deserto ­ disse  o Alquimista. ­ Sabe  que os
homens devem  partir,  para poderem  voltar. Ela  jb  encontrou seu tesouro:
vock. Agora espera que vock encontre o que busca.
     ­ E se eu resolver ficar?
     ­ Serb o Conselheiro do Obsis. Tem  ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e  muitos camelos. Vai  casar-se com  Fbtima  e  vivergo  felizes  o
primeiro  ano.  Aprenderb  a  amar  o  deserto e vai  conhecer cada uma  das
cinq'enta mil tamareiras. Perceberb  como  elas  crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E irb  cada vez entender mais os sinais, porque o deserto j
um mestre melhor que todos os mestres.
     "No segundo  ano  vock  se lembrarb que existe um  tesouro.  Os  sinais
comezargo  a falar insistentemente  sobre  isto,  e vock tentarb ignorb-los.
Usarb  seu  conhecimento  apenas  para  o  bem-estar  do  obsis  e dos  seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecergo por isto.  Os seus camelos lhe
trargo riqueza e poder.
     "No terceiro ano os sinais continuargo a falar sobre seu  tesouro e sua
Lenda Pessoal. Vock vai ficar noites  e noites andando pelo obsis, e  Fbtima
serb uma mulher triste, porque fez  com  que seu caminho fosse interrompido.
Mas vock lhe darb amor, e serb correspondido.  Vock  vai se lembrar  que ela
jamais  pediu que ficasse,  porque uma mulher do  deserto  sabe  esperar seu
homem. Por isso ngo vai culpb-la. Mas  vai andar muitas  noites pelas areias
do  deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse  ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por Fbtima. Porque o que o manteve no
obsis  foi seu pruprio medo  de ngo voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicargo que seu tesouro estb enterrado para sempre.
     No quarto ano, os  sinais o abandonargo, porque vock ngo quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irgo entender isto,  e vock serb destitundo do Conselho. A
esta  altura   serb  um  rico  comerciante,  com  muitos  camelos  e  muitas
mercadorias. Mas passarb o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o  deserto, sabendo que ngo cumpriu sua  Lenda  Pessoal, e que agora j tarde
demais para isto.
     "Sem jamais compreender que o Amor nunca impede  um homem de seguir sua
Lenda  Pessoal. Quando isto  acontece, j  porque ngo era o verdadeiro  Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".


     O Alquimista desfez o cnrculo  no  chgo, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz  lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
a Meca, e o Inglks que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto  um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
     Montaram  em  seus  cavalos, e  desta vez  foi  o  rapaz  que seguiu  o
Alquimista. O vento trazia os rundos do obsis,  e  ele tentava identificar a
voz de Fbtima. Naquele dia ngo tinha ido ao pozo por causa da batalha.
     Mas esta  noite,  enquanto olhavam uma  cobra dentro de um  cnrculo,  o
estranho  cavaleiro  com  seu  falcgo no ombro havia  falado  de  amor  e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
     ­  Vou  com  vock  ­ disse o rapaz.  E  imediatamente sentiu paz no seu
corazgo.
     ­  Partimos  amanhg antes que  o sol nasza ­ foi  a Ūnica  resposta  do
Alquimista.




     O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou  um  dos  rapazes que  dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava Fbtima. Sanram juntos, e foram atj lb. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
     Depois pediu  que descobrisse onde Fbtima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem brabe  fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
     ­ Agora deixe-nos  a  sus ­ disse o rapaz ao jovem  brabe, que voltou a
sua tenda para dormir, orgulhoso  de haver ajudado o Conselheiro do Obsis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
     Fbtima  apareceu na  porta da tenda. Os dois sanram para andar entre as
tamareiras.  O rapaz sabia  que era contra a  Tradizgo,  mas  isto ngo tinha
nenhuma importvncia agora.
     ­ Vou  partir  ­ disse. E quero  que saiba  que  vou voltar.  Eu te amo
porque...
     ­ Ngo  diga nada ­ interrompeu Fbtima. ­ Ama-se porque  se  ama. Ngo hb
qualquer razgo para amar.
     Mas o rapaz continuou:
     ­ Eu  te amo porque tive  um  sonho,  encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei  o deserto,  os clgs declararam guerra,  e estive num pozo para saber
onde morava um Alquimista. Eu te  amo  porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse atj vock.
     ­ Os  dois  se  abrazaram. Era a primeira  vez que um  corpo tocava  no
outro.
     ­ Voltarei ­ repetiu o rapaz.
     ­ Antes  eu olhava o deserto com desejo ­  disse Fbtima. Agora serb com
esperanza.  Meu pai  um  dia partiu,  mas  voltou para minha mge, e continua
voltando sempre.
     E  ngo disseram mais nada.  Andaram um pouco entre  as  tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
     ­ Voltarei como seu pai voltou para a sua mge ­ disse.
     Reparou que os olhos de Fbtima estavam cheios d'bgua.
     ­ Vock chora?


     ­  Sou uma mulher  do  deserto ­ disse  ela, escondendo o  rosto. ­ Mas
acima de tudo, sou uma mulher.

     Fbtima  entrou na tenda. Daqui a pouco o  sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela  ia sair  e fazer aquilo que havia feito durante  tantos anos;
mas  tudo  havia mudado. O rapaz jb ngo  estava mais no obsis, e o obsis ngo
teria mais o significado que  tinha atj pouco tempo antes. Ngo seria mais  o
lugar  com cinq'enta mil  tamareiras e trezentos  pozos, onde os  peregrinos
chegavam contentes  depois  de  uma longa  viagem.  O obsis, daquele dia  em
diante, seria um lugar vazio para ela.
     A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o  rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo  vento,  na esperanza de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como  uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca  de sonhos e
tesouros. A partir  daquele dia,  o  deserto  ia  ser apenas  uma  coisa:  a
esperanza de sua volta.







     ­ Ngo  pense  no  que ficou para  trbs  ­ disse  o  Alquimista,  quando
comezaram a cavalgar pelas areias do deserto. ­ Tudo estb gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecerb para sempre.
     ­ Os  homens  sonham mais com a volta do que  com a partida  ­ disse  o
rapaz, que jb estava se acostumando de novo com o silkncio do deserto.
     ­ Se o que vock encontrou j feito de matjria pura, jamais apodrecerb. E
vock poderb voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a  explosgo
de uma estrela, entgo ngo  vai encontrar nada  quando voltar. Mas terb visto
uma explosgo de luz. E su isto jb valeu a pena.
     O  homem  falava  em linguagem de  alquimia.  Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo a Fbtima.
     Era difncil ngo pensar no  que havia ficado  para trbs. O  deserto, com
sua paisagem  quase sempre igual,  costumava  encher-se  de sonhos. O  rapaz
ainda via as tamareiras, os pozos,  e  o rosto da mulher amada. Via o Inglks
com seu laboraturio, e o cameleiro que era um mestre e ngo sabia. "Talvez  o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
     O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcgo nos ombros. O falcgo
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele sana do ombro  do
Alquimista e  voava em busca de alimento. No  primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pbssaros.
     De noite, estendiam seus cobertores e ngo acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias,  e foram ficando escuras a medida que a lua comezou a
diminuir no cju. Durante uma semana andaram em silkncio,  conversando apenas
sobre as precauzhes  necessbrias  para evitar os  combates entre  os clgs. A
guerra continuava,  e o vento as vezes trazia o cheiro adocicado  de sangue.
Alguma batalha havia  sido travada por perto, e o vento  recordava ao  rapaz
que havia  a  Linguagem  dos Sinais,  sempre pronta para mostrar o  que seus
olhos ngo conseguiam ver.
     Quando completaram sete dias de viagem,  o  Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que  de costume. O falcgo saiu  em busca de caza, e ele tirou o
cantil de bgua e ofereceu ao rapaz.
     ­ Vock agora estb quase no final da viagem ­ disse o Alquimista. ­ Meus
parabjns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
     ­ E vock estb me guiando em silkncio ­ disse o rapaz. ­ Pensei  que  ia
me ensinar  aquilo que sabe. Faz algum  tempo  que  estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas ngo consegui aprender nada.
     ­  Su  existe  uma maneira de aprender  ­  respondeu o Alquimista  ­  J
atravjs da azgo.  Tudo que vock precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
     O rapaz quis  saber o que era, mas o Alquimista  manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcgo.
     ­ Por que o chamam de Alquimista?
     ­ Porque sou.


     ­ E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram  ouro
e ngo conseguiram?
     ­  Buscavam  apenas  ouro  ­  respondeu seu companheiro.  ­ Buscavam  o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prupria Lenda.
     ­ O que me falta saber? ­ insistiu o rapaz.
     Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcgo retornou  com a  comida. Cavaram  um  buraco e  acenderam a  fogueira
dentro dele, para que ningujm pudesse ver a luz das chamas.
     ­  Sou um Alquimista porque  sou  um Alquimista ­  disse ele,  enquanto
preparavam a  comida. ­ Aprendi a cikncia de  meus avus, que  aprenderam  de
seus avus, e assim atj a criazgo do  mundo. Naquela jpoca, toda a cikncia da
Grande  Obra  podia ser  escrita numa simples esmeralda.  Mas os  homens ngo
deram importvncia  as coisas  simples,  e  comezaram  a  escrever  tratados,
interpretazhes, e estudos filosuficos.  Comezaram tambjm a dizer  que sabiam
melhor o caminho que os outros.
     "Mas a Tbboa da Esmeralda continua viva atj hoje".
     ­ O que estava escrito na Tbboa da Esmeralda? ­ quis saber o rapaz.
     O  Alquimista comezou a desenhar  na areia, e  ngo demorou mais  do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
praza onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
     ­  Isto  estava  escrito na Tbboa  da  Esmeralda ­ disse o  Alquimista,
quando acabou de escrever.
     O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
     ­  J um  cudigo  ­  disse o rapaz, um pouco decepcionado com a Tbboa da
Esmeralda. ­ Parece com os livros do Inglks.
     ­ Ngo ­ respondeu  o Alquimista. ­ J como  o vfo dos  gavihes; ngo deve
ser compreendida  simplesmente  pela  razgo.  A Tbboa  da  Esmeralda  j  uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
     "Os sbbios entenderam que este mundo natural j apenas uma imagem e  uma
cupia do Paranso.  A simples existkncia  deste  mundo j  a garantia  de  que
existe um mundo mais perfeito  que ele. Deus o criou  para  que, atravjs das
coisas   visnveis,   os   homens  pudessem   compreender  seus  ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto j que eu chamo de Azgo".
     ­ Devo entender a Tbboa da Esmeralda? ­ perguntou o rapaz.
     ­ "Talvez, se vock estivesse num laboraturio de Alquimia, agora seria o
momento  certo  para  estudar  a  melhor  maneira  de  entender  a Tbboa  da
Esmeralda. Entretanto, vock estb no  Deserto. Entgo mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender  o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da  terra. Vock  nem  precisa  de entender o  deserto: basta  contemplar  um
simples grgo de areia, e verb nele todas as maravilhas da Criazgo".
     ­ Como fazo para mergulhar no deserto?
     ­ Escute seu corazgo.  Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornarb para ela.


     Andaram  em silkncio mais dois  dias. O  Alquimista  estava muito  mais
cauteloso,  porque se aproximavam da zona  de combates  mais violentos. E  o
rapaz procurava escutar seu corazgo.


     Era  um  corazgo difncil; antes  estava  acostumado a  partir sempre, e
agora queria chegar a  todo custo. As vezes, seu corazgo ficava muitas horas
contando histurias de saudades, outras vezes se  emocionava com  o nascer do
sol  no  deserto, e fazia  o  rapaz chorar escondido. O  corazgo  batia mais
rbpido quando falava para  o rapaz sobre o tesouro  e  ficava mais  vagaroso
quando os  olhos  do  rapaz se perdiam no horizonte sem fim do  deserto. Mas
nunca estava em silkncio, mesmo que  o  rapaz ngo trocasse uma palavra com o
Alquimista.
     ­  Por  que  temos  que escutar  o corazgo? ­  perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
     ­ Porque, onde ele estiver, j onde estarb o seu tesouro.
     ­  Meu corazgo j agitado ­ disse o  rapaz. ­ Tem sonhos, se emociona, e
estb apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e ngo me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
     ­ J bom. Seu  corazgo  estb vivo.  Continue a  ouvir o que ele tem para
dizer.
     Nos trks dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no  horizonte.  O corazgo do rapaz comezou a falar sobre o
medo.  Contava para  o rapaz histurias que  tinha ouvido da  Alma  do Mundo,
histurias  de  homens  que  foram em  busca  de  seus  tesouros  e jamais  o
encontraram. As vezes assustava o rapaz com o pensamento de que  poderia ngo
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz  que jb  estava satisfeito,  que jb  havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
     ­ Meu corazgo j traizoeiro ­  disse o rapaz ao Alquimista,  quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. ­ Ngo quer que eu continue.
     ­ Isto j bom ­  respondeu o Alquimista.  ­ Prova que  seu  corazgo estb
vivo.  J  natural  ter  medo  de trocar por um  sonho  tudo aquilo que jb se
conseguiu.
     ­ Entgo, para que devo escutar meu corazgo?
     ­  Porque vock ngo vai  conseguir jamais  mantk-lo calado. E mesmo  que
finja ngo escutar o que ele diz, ele estarb  dentro do  seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
     ­ Mesmo que ele seja traizoeiro?
     ­  A traizgo j  o golpe que  vock ngo espera.  Se vock conhecer bem seu
corazgo, ele  jamais conseguirb isto. Porque  vock conhecerb  seus  sonhos e
seus desejos, e saberb lidar com eles.
     "Ningujm consegue fugir do seu corazgo. Por isso j melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vock ngo espera".

     O  rapaz  continuou  a  escutar  seu corazgo, enquanto caminhavam  pelo
deserto.  Passou  a  conhecer suas  artimanhas  e  seus truques,  e passou a
aceitb-lo como  era.  Entgo o rapaz  deixou de ter medo,  e  deixou  de  ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu  corazgo  lhe disse  que  estava
contente. "Mesmo  que eu reclame um pouco", dizia seu corazgo, "j porque sou
um corazgo de homem, e os corazhes de homens sgo assim. Tkm medo de realizar
seus  maiores  sonhos,   porque  acham  que  ngo  o  merecem,  ou   ngo  vgo
consegui-los. Nus, os corazhes,  morremos de medo su de pensar em amores que
partiram para  sempre, em  momentos que  poderiam  ter sido  bons e que  ngo
foram, em tesouros que  poderiam ter sido descobertos e ficaram  para sempre
escondidos  na  areia. Porque  quando  isto  acontece,  terminamos  sofrendo
muito".


     ­ Meu corazgo tem medo de sofrer ­ disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o cju sem lua.
     ­  Diga  para  ele  que  o  medo de sofrer  j  pior  do  que  o pruprio
sofrimento. E que nenhum corazgo  jamais sofreu quando foi em busca  de seus
sonhos, porque cada momento de busca j um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
     "Cada momento de busca j um momento de encontro", disse o rapaz  ao seu
corazgo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu  sabia que cada hora fazia parte  do sonho  de encontrar. Enquanto
procurei  este meu  tesouro, descobri  no  caminho  coisas  que jamais teria
sonhado  encontrar,   se  ngo  tivesse  tido  a  coragem  de  tentar  coisas
impossnveis aos pastores".
     Entgo seu corazgo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranq'ilo, e  quando acordou,  o seu  corazgo comezou a lhe contar as
coisas  da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus  dentro de  si. E que a felicidade  poderia  ser encontrada num simples
grgo de areia do deserto, como  o Alquimista havia falado. Porque um grgo de
areia  j  um momento da Criazgo, e o Universo demorou milhares de milhhes de
anos para  crib-lo. "Cada  homem na  face da Terra tem  um tesouro que  estb
esperando por  ele",  disse seu corazgo.  Nus, os corazhes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os  homens jb ngo querem mais encontrb-los. Su
falamos dele  para as crianzas. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em  direzgo ao seu  destino.  Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes  estb trazado,  e  que j o caminho da Lenda Pessoal, e  da  felicidade.
Acham o  mundo uma coisa ameazadora ­ e por causa disto o mundo se torna uma
coisa ameazadora.
     "Entgo nus, os corazhes, vamos falando cada vez mais baixo, mas ngo nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras  ngo  sejam  ouvidas: ngo
queremos que os homens sofram porque ngo seguiram seus corazhes".
     ­  Por que  os corazhes ngo  contam  aos  homens  que  devem  continuar
seguindo seus sonhos? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista.
     ­  Porque, neste caso, o corazgo  j o que sofre mais. E os corazhes ngo
gostam de sofrer.
     O rapaz entendeu seu corazgo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu  que, quando estivesse  longe de  seus  sonhos,  o corazgo
apertasse no peito e desse o sinal  de alarme. O rapaz jurou que sempre  que
escutasse este sinal, tambjm o seguiria.
     Naquela noite  conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o corazgo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
     ­ O que fazo agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Siga em direzgo  as  Pirvmides ­ disse  o Alquimista.  ­  E  continue
atento aos sinais. Seu corazgo jb j capaz de lhe mostrar o tesouro.
     ­ Era isto que estava faltando saber?
     ­  Ngo. ­  respondeu o Alquimista.  ­  O que  estb  faltando saber j  o
seguinte:
     "Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela  faz isto ngo  porque seja
mb, mas  para que  possamos, junto com  o  nosso sonho, conquistar tambjm as
lizhes  que aprendemos seguindo em direzgo a ele. J o momento em que a maior
parte das pessoas desiste.  J o  que chamamos,  em linguagem  do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras jb apareceram no horizonte' ".


     "Uma busca comeza sempre  com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
     O rapaz lembrou-se de um velho provjrbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.




     No  dia seguinte apareceu o  primeiro sinal concreto  de  perigo.  Trks
guerreiros  se  aproximaram e perguntaram o que os dois estavam  fazendo por
ali.
     ­ Vim cazar com o meu falcgo ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Precisamos revistb-los  para ver se ngo  levam armas ­ disse  um dos
guerreiros.
     O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
     ­ Para quk tanto dinheiro? ­ perguntou o guerreiro, quando viu  a bolsa
do rapaz.
     ­ Para chegar ao Egito ­ disse ele.
     O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de lnquido,  e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
     ­ Que sgo estas coisas? ­ perguntou o guarda.
     ­ J  a Pedra Filosofal e  o Elixir  da Longa  Vida. J a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir  jamais ficarb doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
     Os guardas riram pra valer,  e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a  resposta muito engrazada,  e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
     ­  Vock estb louco? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista, quando jb haviam
se distanciado bastante. ­ Para que vock fez isto?
     ­  Para  mostrar  a vock  uma  simples  lei  do  mundo  ­  respondeu  o
Alquimista.  ­  Quando temos  os  grandes  tesouros  diante  de  nus,  nunca
percebemos. E sabe por quk? Porque os homens ngo acreditam em tesouros.
     Continuaram andando  pelo deserto. A cada dia que passava, o corazgo do
rapaz ia ficando mais silencioso. Jb ngo queria saber das coisas passadas ou
das  coisas futuras; contentava-se em contemplar  tambjm o deserto, e  beber
junto com o rapaz da  Alma do  Mundo. Ele e seu corazgo  tornaram-se grandes
amigos ­ um passou a ser incapaz de trair o outro.
     Quando o corazgo falava, era para dar estnmulo e forza ao rapaz, que as
vezes achava terrivelmente mazante os dias de silkncio. O corazgo contou-lhe
pela  primeira  vez  suas grandes qualidades:  sua coragem  ao abandonar  as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
     Contou-lhe tambjm mais uma coisa,  que o rapaz nunca  havia notado:  os
perigos  que  passaram perto e que  ele nunca  tinha percebido.  Seu corazgo
disse que certa vez havia escondido  a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz  havia passado mal em  pleno  campo,  vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam  dois assaltantes mais adiante,  que  estavam planejando
roubar  suas  ovelhas,  e  assassinb-lo.  Mas  como  o  rapaz  ngo aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
     ­  Os  corazhes  sempre  ajudam  os  homens?  ­ perguntou  o  rapaz  ao
Alquimista.
     ­ Su os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas  ajudam muito  as crianzas, os
bkbados, e os velhos.
     ­ Quer dizer entgo que ngo hb perigo?


     ­ Quer dizer apenas que os corazhes se esforzam ao mbximo ­ respondeu o
Alquimista.
     Certa tarde passaram  pelo acampamento de um dos clgs. Haviam brabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas  em todos os cantos. Os homens
fumavam narguilj  e  conversavam sobre  os combates. Ningujm  prestou  maior
atenzgo aos dois viajantes.
     ­ Ngo hb qualquer perigo  ­ disse o rapaz, quando jb tinham se afastado
um pouco do acampamento.
     O Alquimista ficou furioso.
     ­ Confie em seu corazgo ­ disse, mas ngo se esqueza de que vock estb no
deserto. Quando os homens estgo em guerra, a Alma do Mundo  tambjm sente  os
gritos de combate.  Ningujm deixa de sofrer as  conseq'kncias de  cada coisa
que se passa debaixo do sol.
     "Tudo j uma coisa Ūnica", pensou o rapaz.
     E  como  se  o deserto quisesse mostrar que  o velho Alquimista  estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detrbs dos viajantes.
     ­ Ngo podem seguir adiante ­ disse um deles. ­  Vocks estgo nas  areias
onde os combates sgo travados.
     ­ Ngo vou muito longe ­ respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos   guerreiros.  Eles  ficaram  quietos  por  alguns  minutos,  e   depois
concordaram com a viagem dos dois.
     O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
     ­ Vock dominou os guardas com o olhar ­ comentou ele.
     ­ Os olhos mostram a forza da alma ­ respondeu o Alquimista.
     Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que,  no  meio da multidgo
de soldados no  acampamento,  um deles  estava olhando fixo para os dois.  E
estava tgo  distante,  que ngo dava sequer para ver  direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
     Finalmente, quando comezaram a cruzar  uma montanha que se estendia por
todo o horizonte,  o  Alquimista  disse que faltavam dois dias para chegarem
atj as Pirvmides.
     ­ Se vamos nos separar logo ­ respondeu o rapaz ­ me ensine Alquimia.
     ­ Vock jb sabe. J penetrar na Alma do Mundo,  e descobrir o tesouro que
ela reservou para nus.
     ­ Ngo j isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
     O Alquimista respeitou  o silkncio do deserto,  e su respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
     ­ Tudo no Universo  evolui ­ disse ele. ­ E para os sbbios, o ouro j  o
metal mais evolundo. Ngo pergunte porquk; ngo sei. Sei apenas que a Tradizgo
estb sempre certa.
     "Os homens  j que  ngo interpretaram bem as  palavras dos sbbios.  E ao
invjs de snmbolo de evoluzgo, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
     ­  As coisas falam  muitas linguagens  ­  disse o rapaz. ­ Vi quando  o
relincho de camelo  era  apenas um relincho, depois passou  a  ser  sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
     Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
     ­  Conheci  verdadeiros  alquimistas  ­  continuou. ­ Se  trancavam  no
laboraturio e tentavam evoluir como  o ouro; descobriam a  Pedra  Filosofal.
Porque  haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tambjm tudo que
estb a sua volta.


     "Outros conseguiram  a pedra por acidente. Jb tinham  o dom, suas almas
estavam  mais despertas  que  a das outras pessoas.  Mas  estes  ngo contam,
porque sgo raros.
     "Outros, enfim,  buscavam  apenas  o  ouro. Estes jamais descobriram  o
segredo.  Esqueceram-se de  que o chumbo, o  cobre,  o ferro, tambjm tkm sua
Lenda  Pessoal  para cumprir.  Quem interfere na Lenda  Pessoal  dos outros,
nunca descobrirb a sua".
     As  palavras do Alquimista soaram  como  uma maldizgo. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
     ­ Isto um dia jb foi um mar ­ disse.
     ­ Jb tinha reparado ­  respondeu o rapaz. O  Alquimista pediu ao  rapaz
para colocar  a  concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes  quando
era crianza, e escutou o barulho do mar.
     ­ O  mar  continua  dentro desta concha, porque j sua  Lenda Pessoal. E
jamais a abandonarb, atj que o deserto se cubra novamente de bgua.
     Depois montaram em seus  cavalos, e seguiram em direzgo as Pirvmides do
Egito.




     O sol tinha  comezado a descer quando  o corazgo do  rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de  gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas  este  parecia  ngo  haver  notado  nada.  Cinco  minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros  a sua frente, as silhuetas cortadas contra  o sol.
Antes  que  pudesse  falar   com  o  Alquimista,   os  dois   cavaleiros  se
transformaram  em dez, depois em cem,  atj  que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
     Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro  vju azul,  deixando apenas os olhos de
fora.
     Mesmo distante,  os olhos mostravam a forza de  suas almas. E  os olhos
falavam em morte.


     Levaram os dois para um acampamento  militar nas imediazhes. Um soldado
empurrou  o  rapaz  e o Alquimista para dentro de uma  tenda.  Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no obsis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
     ­ Sgo os espihes ­ disse um dos homens.
     ­ Somos apenas viajantes ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Vocks  foram vistos  no  acampamento  inimigo hb trks  dias atrbs. E
conversaram com um dos guerreiros.
     ­ Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas ­ disse o
Alquimista. Ngo tenho informazhes de tropas, ou o movimento dos clgs. Apenas
guiava meu amigo atj aqui.
     ­ Quem j seu amigo? perguntou o comandante.
     ­ Um Alquimista ­ disse o Alquimista. ­ Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinbria.
     O rapaz ouvia em silkncio. E com medo.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? ­ disse outro homem.


     ­ Trouxe dinheiro  para oferecer a seu  clg ­  respondeu o  Alquimista,
antes que o rapaz  dissesse qualquer palavra.  E  pegando  a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
     O brabe aceitou em silkncio. Dava para comprar muitas armas.
     ­ O que j um Alquimista? ­ perguntou, finalmente.
     ­ Um homem que conhece a natureza  e o mundo. Se ele quisesse, destruna
este acampamento apenas com a forza do vento.
     Os homens riram.  Estavam acostumados com a forza da guerra,  e o vento
ngo detjm um golpe mortal. Dentro do peito de cada um,  porjm, seus corazhes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
     ­ Quero ver ­ disse o general.
     ­ Precisamos de  trks  dias ­  respondeu o  Alquimista.  ­ E ele vai se
transformar em vento,  apenas  para mostrar a  forza de seu  poder.  Se  ngo
conseguir,  nus lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela  honra de seu
clg.
     ­ Ngo pode me oferecer o que jb j meu ­ disse, arrogante, o general.
     Mas concedeu os trks dias aos viajantes.

     O rapaz  estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os brazos.
     ­ Ngo  deixe  que  eles percebam seu medo ­ disse o Alquimista.  ­  Sgo
homens corajosos, e desprezam os covardes.
     O rapaz,  porjm,  estava sem voz.  Su conseguiu falar  depois de  algum
tempo,  enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. Ngo  havia necessidade
de prisgo: os brabes apenas tiraram seus cavalos.  E mais  uma vez  o  mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponnvel.
     ­ Vock deu todo o meu tesouro! ­ disse o rapaz. ­ Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
     ­ E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? ­ respondeu, o
Alquimista.  ­  Seu dinheiro o salvou por trks dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
     Mas o  rapaz estava apavorado  demais  para ouvir palavras sbbias.  Ngo
sabia como transformar-se em vento. Ngo era um Alquimista.
     O Alquimista pediu chb a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz.  Uma onda  de tranq'ilidade  encheu seu corpo,  enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele ngo conseguia compreender.
     ­  Ngo se  entregue  ao  desespero ­  disse o  Alquimista,  com uma voz
estranhamente doce.  ­ Isto faz  com que vock  ngo consiga conversar com seu
corazgo.
     ­ Mas eu ngo sei transformar-me em vento.
     ­  Quem vive  sua Lenda Pessoal, sabe tudo que  precisa  saber. Su  uma
coisa torna um sonho impossnvel: o medo de fracassar.
     ­ Ngo tenho medo de fracassar. Apenas ngo sei transformar-me em vento.
     ­ Pois terb que aprender. Sua vida depende disto.
     ­ E se eu ngo conseguir?
     ­ Vai morrer  enquanto vivia sua Lenda  Pessoal. J muito  melhor do que
morrer  como  milhhes  de pessoas,  que jamais souberam que a  Lenda Pessoal
existia.


     "Entretanto, ngo se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensnveis a vida."



     O  primeiro dia se passou. Houve uma grande  batalha  nas imediazhes, e
vbrios feridos foram  trazidos para o acampamento  militar. "Nada muda com a
morte",  pensava o rapaz. Os guerreiros  que morriam  eram  substitundos por
outros, e a vida continuava.
     ­ Poderias ter morrido  mais tarde,  meu amigo ­ disse  o guarda para o
corpo de um  companheiro  seu. ­ Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
     No  final do dia, o  rapaz foi procurar  o Alquimista. Estava levando o
falcgo para o deserto.
     ­ Ngo sei transformar-me em vento ­ repetiu o rapaz.
     ­  Lembre-se  do  que eu lhe  disse:  de que o  mundo j  apenas a parte
visnvel  de  Deus. De  que  a  Alquimia j trazer  para  o plano  material  a
perfeizgo espiritual.
     ­ O que vock faz?
     ­ Alimento meu falcgo.
     ­ Se eu ngo conseguir transformar-me em vento, nus vamos morrer ­ disse
o rapaz. ­ Para que alimentar o falcgo?
     ­ Quem vai morrer j vock ­ disse o Alquimista.  ­ Eu sei transformar-me
em vento.




     No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas  o deixaram passar; jb ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento,  e ngo queriam chegar perto  dele. Aljm  disso,  o
deserto era uma grande e intransponnvel muralha.
     Ficou o resto da tarde  do  segundo dia olhando o deserto. Escutou  seu
corazgo. E o deserto escutou seu medo.
     Ambos falavam a mesma lnngua.




     No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
     ­ Vamos  ver o garoto  que se transforma em vento ­  disse o General ao
Alquimista.
     ­ Vamos ver ­ respondeu o Alquimista.
     O rapaz os conduziu atj  o  lugar onde  havia estado no  dia  anterior.
Entgo pediu que todos se sentassem.
     ­ Vai demorar um pouco ­ disse o rapaz.
     ­ Ngo temos pressa ­ respondeu o General. ­ Somos homens do deserto.


     O rapaz  comezou a olhar o horizonte  a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas  e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a  sobrevivkncia  era  impossnvel.  Ali  estava  o deserto,  que  ele  havia
percorrido durante tantos meses,  e que, mesmo assim,  su conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de clgs, e um obsis com cinq'enta mil tamareiras e trezentos pozos.
     ­ O que  vock  quer aqui  hoje? ­ perguntou  o deserto. ­  Jb  ngo  nos
contemplamos o suficiente ontem?
     ­  Em algum ponto  vock guarda a  pessoa que  eu amo ­ disse o rapaz. ­
Entgo, quando olho suas areias contemplo tambjm a ela.  Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
     ­ O que j o amor? ­ perguntou o deserto.
     ­ O amor  j quando o falcgo voa sobre suas areias. Porque para ele vock
j um campo verde, e ele nunca voltou sem caza. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vock j generoso com ele.
     ­ O  bico  do falcgo tira pedazos de  mim ­ disse o deserto. ­  Durante
anos eu cultivo  sua caza, alimento  com a pouca bgua que tenho, mostro onde
estb a comida. E um dia, desce o  falcgo  do cju,  justamente quando  eu  ia
sentir o  carinho da  caza  sobre minhas areias. Ele carrega  aquilo que  eu
criei.
     ­ Mas foi para isto  que  vock criou a caza ­ respondeu o rapaz. ­ Para
alimentar  o  falcgo.  E  o  falcgo alimentarb  o  homem.  E  o homem  entgo
alimentarb  um  dia  tuas  areias, de  onde a caza  tornarb a  surgir. Assim
move-se o mundo.
     ­ J isto o amor?
     ­ J isto o amor. J o que faz a  caza transformar-se em falcgo, o falcgo
em  homem,  e  o homem  de  novo  em  deserto.  J  isto  que  faz  o  chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
     ­ Ngo entendo suas palavras ­ disse o deserto.
     ­  Entgo  entenda  que  em algum  lugar de suas  areias, uma mulher  me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
     O deserto ficou em silkncio por alguns instantes.
     ­ Eu lhe dou minhas  areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
ngo posso fazer nada. Peza ajuda ao vento.

     Uma pequena brisa comezou a soprar. Os comandantes olhavam o  rapaz  ao
longe, falando uma linguagem que eles ngo conheciam.


     O Alquimista sorria.

     O vento  chegou perto  do rapaz e  tocou seu  rosto. Havia escutado sua
conversa com  o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
     ­ Me ajude ­ disse  o rapaz ao vento. ­ Certo dia escutei em vock a voz
da minha amada.
     ­ Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
     ­ Meu corazgo ­ respondeu o rapaz.
     O  vento tinha  muitos nomes. Ali ele  era chamado de siroco, porque os
brabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de bgua, onde habitavam
homens negros.  Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o  chamavam de
Levante,  porque acreditavam que trazia as areias do  deserto e os gritos de
guerra dos mouros.  Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem  que o vento nascia  em Andaluzia. Mas o vento ngo vinha de
lugar nenhum,  e ngo ia para  lugar nenhum, e por isso era mais  forte que o
deserto. Um dia eles  poderiam plantar brvores no deserto, e atj mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
     ­ Vock ngo  pode  ser  o  vento ­ disse o vento. ­ Somos  de  naturezas
diferentes.
     ­ Ngo j verdade ­ disse  o  rapaz.  ­  Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto  vagava  o mundo com vock. Tenho em mim os ventos,  os desertos, os
oceanos, as  estrelas, e tudo que foi  criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma Mgo,  e temos a mesma Alma. Quero ser como vock, penetrar em todos  os
cantos, atravessar os mares,  tirar  a  areia que  cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
     ­  Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia ­ disse o vento. ­  Ele
falou  que cada  coisa  tem  sua  Lenda  Pessoal. As  pessoas ngo  podem  se
transformar em vento.
     ­  Me ensine a  ser vento por alguns instantes, ­ disse o rapaz. ­ Para
que  possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos  homens e dos
ventos.
     O  vento  era curioso, e aquilo  era uma  coisa  que ele  ngo conhecia.
Gostaria  de conversar sobre aquele  assunto, mas ngo sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele  conhecia tanta coisa!  Construna  desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mŪsica e de rundos estranhos. Achava que era  ilimitado, e no entanto ali
estava  um  rapaz dizendo que  ainda havia mais  coisas  que um vento  podia
fazer.
     ­ J isto que chamam de Amor ­ disse o rapaz, ao ver  que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. ­ Quando se ama j que se consegue ser  qualquer
coisa da Criazgo. Quando se ama ngo temos necessidade  nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nus, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, j claro.
     O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado  com o que o rapaz dizia.
Comezou a soprar com mais  velocidade,  levantando as areias do deserto. Mas
finalmente  teve  que reconhecer  que,  mesmo  havendo  percorrido  o  mundo
inteiro, ngo sabia como transformar homens em ventos. E ngo conhecia o Amor.
     ­ Enquanto  passeava  pelo  mundo,  notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando  para o cju ­ disse o  vento, furioso por  ter que aceitar suas
limitazhes. ­ Talvez seja melhor perguntar ao cju.


     ­ Entgo me ajude ­ disse o  rapaz. ­ Encha  este  lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
     O  vento entgo soprou com  muita forza, e o cju ficou  cheio de  areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.



     No acampamento estava ficando difncil de enxergar. Os homens do deserto
jb conheciam aquele vento.  Chamava-se Simum, e era  pior que uma tempestade
no mar ­ porque eles ngo conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
comezaram a ficar cobertas de areia.
     No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
     ­ Talvez  seja  melhor  pararmos  com isto.  Eles  jb quase ngo  podiam
enxergar o rapaz.  Os rostos estavam cobertos pelos lenzos azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
     ­ Vamos parar com isto ­ insistiu outro comandante.
     ­ Quero ver  a grandeza de Allah ­ disse com respeito  o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
     Mas anotou mentalmente o nome  dos  dois homens que haviam  tido  medo.
Assim  que  o vento  parasse, ia destitun-los de  seus comandos,  porque  os
homens do deserto ngo sentem medo.




     O vento me disse  que vock conhece o Amor ­ disse  o rapaz ao Sol. ­ Se
vock conhece o Amor, conhece tambjm a Alma do Mundo, que j feita de Amor.
     ­ Daqui de onde estou ­ disse o sol ­ posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha  alma, e  nus, juntos, fazemos as  plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de  sombra. Daqui  de onde estou ­ e estou muito
longe do mundo ­ aprendi a  amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco  mais
da Terra, tudo que  estb nela morrerb, e a Alma do Mundo deixarb de existir.
Entgo nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe  dou vida e calor,  e ela me
db uma razgo para viver.
     ­ Vock conhece o Amor ­ disse o rapaz.
     ­ E conhezo a Alma do  Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala  que seu maior problema j que atj hoje, su os
minerais e os vegetais entenderam que tudo j uma coisa su.  E para isto, ngo
precisa que o ferro seja  igual ao cobre, e que o cobre seja igual  ao ouro.
Cada um cumpre sua funzgo exata nesta coisa Ūnica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz  se a  Mgo que escreveu  tudo  isto tivesse  parado no  quinto dia da
criazgo.
     "Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
     ­  Vock j  sbbio  porque vk tudo a distvncia ­ respondeu o rapaz. ­ Mas
ngo conhece o  Amor. Se ngo houvesse um sexto dia da criazgo,  ngo haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem  sua Lenda Pessoal,  j  verdade, mas  um  dia  esta  Lenda  Pessoal serb
cumprida. Entgo  j  preciso transformar-se  em algo  melhor, e  ter uma nova
Lenda Pessoal, atj que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa su.


     O  sol  ficou pensativo  e resolveu  brilhar mais forte.  O vento,  que
estava gostando da  conversa, soprou tambjm  mais forte, para que  o sol ngo
cegasse o rapaz.
     ­  Para isto  existe a  Alquimia ­ disse o rapaz. ­ Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois  queira ser melhor do  que foi na
sua vida anterior. O  chumbo cumprirb seu papel atj que o mundo ngo  precise
mais de chumbo; entgo ele terb que transformar-se em ouro.
     "Os Alquimistas fazem isto. Mostram  que, quando buscamos ser  melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tambjm".
     ­ E por que vock diz que eu ngo conhezo o Amor? ­ perguntou o Sol.
     ­ Porque o amor  ngo j  estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo  de longe,  como  vock.  O  Amor  j a  forza  que
transforma e melhora  a  Alma do Mundo.  Quando penetrei nela pela  primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixhes. Somos nus que alimentamos
a  Alma do  Mundo, e  a  terra onde  vivemos serb melhor ou pior,  se formos
melhores ou piores. An  j que entra  a forza  do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
     ­ O que vock quer de mim? ­ perguntou o Sol.
     ­ Que me ajude a transformar-me em vento ­ respondeu o rapaz.
     ­ A Natureza me conhece como a mais sbbia de todas as criaturas ­ disse
o Sol. ­ Mas ngo sei como transformb-lo em vento.
     ­ Com quem devo falar, entgo?
     Por  um  momento o  sol ficou  quieto. O  vento estava  ouvindo,  e  ia
espalhar  por todo  o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto,  ngo
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
     ­ Converse com a Mgo que escreveu tudo ­ disse o Sol.

     O vento gritou  de contentamento, e soprou com mais forza do que nunca.
As tendas comezaram a  ser arrancadas  da areia, e os animais soltaram-se de
suas rjdeas. No rochedo, os homens se agarravam  uns  aos  outros  para  ngo
serem atirados longe.

     O rapaz se virou entgo para a Mgo que Tudo Havia Escrito. E ao invjs de
falar qualquer coisa, sentiu que o  Universo ficava  em silkncio, e ficou em
silkncio tambjm.
     Uma forza de Amor jorrou de seu corazgo, e o rapaz comezou a rezar. Era
uma orazgo que  nunca tinha feito antes,  porque era uma orazgo sem palavras
ou  sem pedidos. Ngo estava agradecendo  pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto,  nem implorando  para vender  mais cristais, nem  pedindo  para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua  volta. No silkncio  que
se seguiu, o  rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tambjm buscavam
os sinais que aquela Mgo havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender  o  que estava escrito  numa  simples esmeralda. Sabia que  aqueles
sinais  estavam espalhados na Terra e no Espazo,  e que em sua aparkncia ngo
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os  suis, e nem os homens sabiam porque tinham  sido criados. Mas aquela
Mgo  tinha um motivo para tudo isto, e su ela era  capaz de operar milagres,
de  transformar  oceanos  em  desertos, e  homens  em  vento.  Porque su ela
entendia que um desngnio maior empurrava o Universo a um ponto onde  os seis
dias da criazgo se transformariam na Grande Obra.


     E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do  Mundo  era a
parte da Alma  de Deus, e viu que a Alma de  Deus era a  sua prupria alma. E
que podia, entgo, realizar milagres.




     O simum  soprou naquele  dia como jamais havia soprado.  Durante muitas
gerazhes os  brabes contaram entre  si  a  lenda  de um rapaz que  havia  se
transformado em vento, quase destrundo um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
     Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele ngo estava mais lb; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
     Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Su duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discnpulo certo, e o General, porque
o discnpulo tinha entendido a gluria de Deus.
     No  dia seguinte, o general  despediu-se  do  rapaz e do  Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse atj onde os dois quisessem.




     Caminharam  o  dia  inteiro. Quando estava  entardecendo,  chegaram  em
frente a um mosteiro copta. O  Alquimista  dispensou a  escolta, e desceu de
seu cavalo.
     ­ Daqui para frente vock vai sozinho ­ disse o Alquimista. ­ Sgo apenas
trks horas atj as Pirvmides.
     ­ Obrigado ­ disse o rapaz. ­ Vock me ensinou a Linguagem do Mundo.
     ­ Eu apenas recordei o que vock jb sabia.
     O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o  alquimista convidou  o
rapaz para entrar.
     ­ Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha ­ disse ele.
     Foram atj a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe  um pouco de chumbo,  que o Alquimista derreteu dentro de  um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado  lnquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma  camada do tamanho  de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
     A  mistura ganhou uma cor vermelha, como o  sangue. O Alquimista  entgo
tirou  a panela do fogo e a  deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos clgs.
     Deve durar muito ­ disse ele para o monge.
     O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh,  esperando que a  guerra  acabasse.  "Mas seja feita a  vontade de
Deus", disse o monge.
     ­ Exatamente ­ respondeu o Alquimista.
     Quando  a  panela  acabou  de  esfriar,  o  monge  e  o  rapaz  olharam
deslumbrados. O chumbo tinha  secado na forma circular da panela, mas jb ngo
era mais chumbo. Era ouro.
     ­ Aprenderei a fazer isto um dia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Esta foi minha Lenda Pessoal, e ngo a sua ­ respondeu o Alquimista. ­
Mas queria lhe mostrar que j possnvel.
     Caminharam de novo atj a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
     ­  Esta j  para  vock ­ disse ele, estendendo uma parte para o monge. ­
Por sua generosidade com os peregrinos.
     ­ Estou recebendo um pagamento aljm da minha generosidade ­ respondeu o
monge.
     ­ Jamais repita isto. A vida  pode escutar, e lhe dar  menos da pruxima
vez.
     Depois aproximou-se do rapaz.
     ­ Esta j para vock. Para pagar o que deixou com o general.
     O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o comentbrio do Alquimista com o monge
...
     ­  Esta j para mim ­ disse o Alquimista,  guardando uma parte. ­ Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os clgs.
     Entgo pegou o quarto pedazo e deu de novo para o monge.
     ­ Esta j para o rapaz. Caso ele necessite.
     ­ Mas estou indo  em  busca do meu tesouro ­ disse o rapaz. Estou perto
dele agora!


     ­ E tenho certeza que irb encontrb-lo ­ falou o Alquimista.
     ­ Entgo por que isto?
     ­ Porque vock jb perdeu duas vezes,  com  o  ladrgo e com o general,  o
dinheiro que ganhou em  sua viagem. Eu sou um velho brabe supersticioso, que
acredito nos provjrbios de minha terra. E existe um provjrbio que diz:
     "Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais  acontecer.  Mas  tudo  que
acontece duas vezes, acontecerb certamente uma terceira".
     Montaram em seus cavalos.


     ­ Quero lhe contar uma histuria sobre sonhos ­ disse o Alquimista.
     O rapaz aproximou seu cavalo.
     ­ Na antiga Roma, na jpoca  do imperador  Tibjrio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o exjrcito,
foi enviado para as mais  distantes  regihes  do Impjrio.  O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
     "Certa  noite, o velho  teve um sonho. Um  anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam  conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gerazhes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
     "Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crianza que ia
ser  esmagada  pelas  rodas de  uma  carruagem. Como tinha  se comportado de
maneira correta  e  justa por toda  a sua  vida, foi  direto  para o cju,  e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
     "­ Vock foi um homem bom ­ disse-lhe o anjo. ­ Viveu sua existkncia com
amor,  e  morreu  com  dignidade. Posso realizar  agora qualquer  desejo que
tenha.
     "­ A vida  tambjm foi boa para mim ­ respondeu o  velho. ­  Quando vock
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esforzos estavam justificados.
Porque  os  versos  de meu  filho  ficargo entre  os  homens  pelos  sjculos
vindouros. Nada tenho  a pedir para mim; entretanto,  todo pai se orgulharia
de ver a fama de algujm que ele cuidou quando crianza e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
     "O  anjo  tocou no ombro do velho, e os dois  foram projetados  para um
futuro  distante. Em  volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares  de
pessoas, que falavam numa lnngua estranha.
     "O velho chorou de alegria.
     "­  Eu sabia que os versos do meu  filho poeta  eram bons e  imortais ­
disse para o  anjo, entre lbgrimas. ­ Gostaria que  vock me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas estgo repetindo.
     "O anjo entgo se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num  dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
     "­ Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma ­ disse o
anjo. ­ Todos gostavam, e se divertiam com  eles.  Mas  quando o  reinado de
Tibjrio  acabou, seus versos tambjm  foram esquecidos. Estas palavras sgo de
seu filho que entrou para o exjrcito.
     "O velho olhou surpreso para o anjo.


     "­ Seu filho foi servir num lugar  distante, e tornou-se centurigo. Era
tambjm um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu  filho, entgo,  ouviu falar de um rabi que curava os
doentes,  e  andou  dias e  dias em  busca deste homem.  Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o  Filho de  Deus. Encontrou
outras pessoas que  haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centurigo romano converteu-se a sua fj. Atj que certa manhg
chegou perto do Rabi.
     "­ Contou-lhe  que tinha um servo doente. E  o Rabi se prontificou a ir
atj sua casa. Mas  o centurigo era um homem  de fj,  e olhando no fundo  dos
olhos do  Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
     "­ Estas sgo as palavras  de seu filho ­ disse o  anjo ao velho . ­ Sgo
as palavras que ele disse  ao Rabi naquele momento,  e que  nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu ngo sou digno que entreis em minha casa,  mas
dizei uma su palavra e meu servo serb salvo".

     O Alquimista moveu seu cavalo.
     ­  Ngo  importa  o   que  faza,  cada  pessoa   na  Terra  estb  sempre
representando o papel principal da Histuria do mundo ­ disse ele.
     ­ E normalmente ngo sabe disto.
     O rapaz  sorriu.  Nunca  havia  pensado  que a  vida  pudesse  ser  tgo
importante para um pastor.
     ­ Adeus ­ disse o Alquimista.
     ­ Adeus ­ respondeu o rapaz.






     O rapaz caminhou  duas  horas e meia pelo deserto,  procurando  escutar
atentamente o que seu corazgo  dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
     "Onde estiver seu tesouro, ali estarb tambjm  o seu corazgo", dissera o
Alquimista.
     Mas seu corazgo falava em outras coisas.
     Contava com  orgulho a  histuria de um  pastor  que  havia deixado suas
ovelhas para seguir  um sono  que se  repetiu  duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que  fizeram isto, que foram em busca  de terras
distantes  ou de mulheres bonitas, enfrentando os  homens de  sua jpoca  com
seus  preconceitos e conceitos. Falou durante todo  aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudanzas.
     Quando ia comezar a subir uma duna ­ e su naquele momento ­ foi que seu
corazgo sussurrou ao seu ouvido  ­ "esteja atento  para  o  lugar  onde vock
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar estb seu tesouro".
     O rapaz comezou  a subir a duna lentamente. O cju, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mks  pelo deserto. A lua
iluminava  tambjm  a duna, num jogo de sombras, que fazia com  que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em  que  soltara  livremente um  cavalo pelo deserto, dando um bom  sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o  silkncio do deserto, e  a  jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
     Quando, depois de  alguns  minutos, chegou ao topo da duna, seu corazgo
deu um  salto.  Iluminadas pela luz da  lua cheia e  pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pirvmides do Egito.
     O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em  sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglks, e  um alquimista. Sobretudo, por haver  encontrado uma mulher  do
deserto, que lhe tinha  feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
     Os  muitos  sjculos das  Pirvmides  do Egito contemplavam,  do alto,  o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar  ao obsis, pegar Fbtima,  e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia  no deserto, mesmo
compreendendo  a Linguagem do  Mundo,  mesmo  sabendo  transformar chumbo em
ouro. Ngo tinha que  mostrar  a  ningujm  sua cikncia e  sua  arte. Enquanto
caminhava  em  direzgo  a  sua  Lenda  Pessoal,  havia  aprendido  tudo  que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
     Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra su estb completa quando  o
objetivo j atingido.  Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
chgo  e viu  que,  no  local onde haviam cando suas lbgrimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o snmbolo de Deus.
     Ali estava  mais um  sinal.  E  o  rapaz  comezou a  cavar,  depois  de
lembrar-se do mercador de cristais; ningujm conseguiria  ter uma Pirvmide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.

     Durante a noite inteira  o rapaz cavou no lugar  marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pirvmides, os sjculos o contemplavam, em silkncio .  Mas o
rapaz ngo desistia:


     cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a  areia de volta para o buraco. Suas mgos ficaram  cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu corazgo. E seu corazgo dissera para cavar onde
suas lbgrimas canssem.
     De  repente, quando  estava  tentando tirar algumas  pedras  que haviam
aparecido,  o  rapaz  ouviu passos.  Algumas  pessoas  se  aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz ngo podia ver seus olhos, nem seus rostos.
     ­ O que vock estb fazendo an? ­ perguntou um dos vultos.
     O rapaz  ngo  respondeu. Mas sentiu medo.  Tinha agora  um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
     ­ Somos refugiados da guerra dos clgs ­ disse outro vulto. ­ Precisamos
saber o que vock esconde an. Precisamos de dinheiro.
     ­ Ngo escondo nada ­ respondeu o rapaz.
     Mas  um dos  recjm-chegados agarrou-o  e  o  puxou para fora do buraco.
Outro comezou a revistar seus bolsos. E encontraram o pedazo de ouro.
     ­ Ele tem ouro ­ disse um dos salteadores.
     A lua iluminou a face de quem o  estava revistando, e ele viu,  em seus
olhos, a morte.
     ­ Deve haver mais ouro escondido no chgo ­ disse outro.
     E obrigaram o  rapaz a  cavar. O rapaz  continuou cavando,  e ngo havia
nada.  Entgo  comezaram  a  bater  no  rapaz.  Espancaram o  rapaz  atj  que
aparecessem no cju os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava pruxima.
     "De  que adianta o dinheiro,  se  tiver  que  morrer?  Poucas  vezes  o
dinheiro j capaz de livrar algujm da morte", dissera o Alquimista.
     ­ Estou procurando um tesouro! ­ gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca  ferida e  inchada de  pancadas,  contou  aos  salteadores  que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pirvmides do Egito.
     O  que parecia o  chefe ficou um  longo tempo em silkncio. Depois falou
com um deles:
     ­ Pode deixb-lo. Ele ngo tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
     O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pirvmides.
     ­ Vamos embora ­ disse o chefe para os outros.
     Depois, virou-se para o rapaz:
     ­  Vock  ngo vai morrer ­ disse. ­ Vai viver e aprender que o homem ngo
pode  ser tgo  estŪpido. An, neste  lugar  onde vock estb, eu tambjm tive um
sonho repetido  hb quase dois anos atrbs. Sonhei que devia ir atj os  campos
da Espanha, buscar  uma igreja em runnas onde os pastores  costumavam dormir
com suas ovelhas, e  que tinha um sicfmoro crescendo dentro da sacristia, se
eu  cavasse  na  raiz  deste  sicfmoro,  haveria  de  encontrar  um  tesouro
escondido. Mas ngo sou estŪpido de cruzar um deserto su porque tive um sonho
repetido.
     Depois foi embora.
     O rapaz  levantou-se  com  dificuldade,  e  olhou  mais uma vez para as
Pirvmides.  As Pirvmides sorriram  para  ele, e ele  sorriu de  volta, com o
corazgo repleto de felicidade.
     Havia encontrado o tesouro.






     O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
jb  estava quase anoitecendo.  O  sicfmoro ainda  continuava na sacristia, e
ainda  se podiam ver  as estrelas atravjs do teto  semidestrundo. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha  sido uma noite
tranq'ila, exceto pelo sonho.
     Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao invjs disto, trazia uma pb.
     Ficou muito tempo olhando o cju. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite  no deserto, quando tinha tambjm  olhado
as estrelas e  bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e  a maneira  estranha de  Deus  lhe mostrar o tesouro. Se ngo
tivesse acreditado em sonhos repetidos, ngo tinha encontrado a cigana, nem o
rei,  nem o salteador,  nem... "bom, a lista j  muito grande.  Mas o caminho
estava escrito  pelos  sinais,  e eu ngo  tinha como errar",  disse  para si
mesmo.
     Dormiu  sem perceber, e quando acordou, o sol jb ia alto. Entgo comezou
a escavar a raiz do sicfmoro.
     "Velho bruxo", pensava o rapaz. "Vock sabia de  tudo. Deixou  atj mesmo
um  pouco de ouro para que eu pudesse voltar atj  esta  Igreja. O  monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. Ngo podia me poupar isto?"
     "Ngo", ele escutou o  vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vock ngo
teria visto as Pirvmides. Sgo muito bonitas, ngo acha?"
     Era a voz do  Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a pb bateu em algo sulido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baŪ cheio  de velhas  moedas de  ouro  espanholas. Havia  tambjm  pedrarias,
mbscaras de ouro com penas brancas e vermelhas,  ndolos de pedra  cravejados
de brilhantes. Pezas de uma conquista que o pans jb havia esquecido hb muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
     O rapaz tirou o  Urim  e o  Tumim do alforje. Tinha  utilizado  as duas
pedras apenas uma  vez, quando estava certa manhg,  num mercado. A  vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
     Guardou o  Urim  e  o Tumim no baŪ de  ouro. Eram tambjm  parte  de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
     "Realmente a vida j generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz.  Entgo lembrou-se de  que tinha  que ir  atj Tarifa, e dar  um djcimo
daquilo tudo  para a cigana. "Como  sgo espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
     Mas  o vento voltou a  soprar. Era  o  Levante,  o vento  que vinha  da
Bfrica. Ngo  trazia o cheiro do deserto, nem a ameaza de invasgo dos mouros.
Ao invjs disto, trazia um perfume que  ele conhecia bem, e o som de um beijo
­ que veio vindo devagar, devagar, atj parar em seus lbbios.
     O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
     ­ Estou indo, Fbtima ­ disse ele.




Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GMT
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