Ïàáëî Êîýëüî. Àëõèìèê (port) Paulo Coelho. O Alquimista --------------------------------------------------------------- © Copyright Paulo Coelho Paulo Coelho's Home page ¡ http://www.paulocoelho.com.br/ Origin: http://www.cyberminas.com.br ¡ http://www.cyberminas.com.br Date: 14 Aug 2003 --------------------------------------------------------------- Edição especial da página www.paulocoelho.com.br , venda proibida PREFÁCIO É importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um livro simbólico, diferente de O Diário de um Mago, que foi um trabalho de não-ficção. Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idéia de transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, já era fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia. Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e sentir a presença de Deus, a idéia de que tudo ia acabar um dia era desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um líquido capaz de prolongar por muitos anos minha existência, resolvi dedicar- me de corpo e alma à sua fabricação. Era uma época de grandes transformações sociais ­ o começo dos anos setenta ­ e não havia ainda publicações sérias a respeito de Alquimia. Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou três pessoas no Rio de Janeiro que se dedicavam seriamente à Grande Obra, e elas se recusaram a me receber. Conheci também muitas outras pessoas que se diziam alquimistas, possuíam seus laboratórios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que pretendiam ensinar. Mesmo com toda a minha dedicação, os resultados eram absolutamente nulos. Não acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua complicada linguagem. Era um sem-fim de símbolos, de dragões, leões, sóis, luas e mercúrios, e eu sempre tinha a impressão de estar no caminho errado, porque a linguagem simbólica permite uma gigantesca margem de equívocos. Em 1973, já desesperado com a ausência de progresso, cometi uma suprema irresponsabilidade. Nesta época eu era contratado pela Secretaria de Educação de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi utilizar meus alunos em laboratórios teatrais que tinham como tema a Táboa da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursões minhas nas áreas pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar na própria carne a verdade do provérbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a minha volta ruiu por completo. Passei os próximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cética com relação a tudo que dissesse respeito à área mística. Neste exílio espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que só aceitamos uma verdade quando primeira a negamos do fundo da alma, que não devemos fugir de nosso próprio destino, e que a mão de Deus é infinitamente generosa, apesar de Seu rigor. Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao caminho que está traçado para mim. E enquanto ele me treinava em seus ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha própria conta. Certa noite, enquanto conversávamos depois de uma exaustiva sessão de telepatia, perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tão vaga e tão complicada. ­ Existem três tipos de alquimistas ­ disse meu Mestre. ­ Aqueles que são vagos porque não sabem o que estão falando; aqueles que são vagos porque sabem o que estão falando, mas sabem também que a linguagem da Alquimia é uma linguagem dirigida ao coração, e não à razão. ­ E qual o terceiro tipo? ­ perguntei. ­ Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram, através de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal. E com isto, meu Mestre ­ que pertencia ao segundo tipo ­ resolveu me dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbólica, que tanto me irritava e me desnorteava, era a única maneira de se atingir a Alma do Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocínio intelectual se recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a Grande Obra não é tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a face da Terra. É claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um ovo e de um frasco com líquido, mas todos nós podemos ­ sem qualquer sombra de dúvida ­ mergulhar na Alma do Mundo. Por isso, "O Alquimista" é também um texto simbólico. No decorrer de suas páginas, além de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal: Hemingway, Blake, Borges (que também utilizou a história persa para um de seus contos), Malba Tahan, entre outros. Para completar este extenso prefácio, e ilustrar o que meu Mestre queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma história que ele mesmo me contou no seu laboratório. Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus braços, resolveu descer à Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a Bíblia, um terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge após monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus. No último lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento, que nunca havia aprendido os sábios textos da época. Seus pais eram pessoas simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos. Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as homenagens, porque o antigo malabarista não tinha nada de importante para dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do seu coração, também ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de si para Jesus e a Virgem. Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmãos, ele tirou algumas laranjas do bolso e começou a jogá-las para cima, fazendo malabarismos, que era a única coisa que sabia fazer. Foi só neste instante que o Menino Jesus sorriu, e começou a bater palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os braços, deixando que segurasse um pouco o menino. O AUTOR Para J. Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra. Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa. Tinha ela uma irmã, chamada Maria, que sentou-se aos pés do Senhor, e ficou ouvindo seus ensinamentos. Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviços. Então aproximou-se de Jesus e disse: ­ Senhor! Não te importas de que eu fique a servir sozinha? Ordena a minha irmã que venha ajudar-me! Respondeu-lhe o Senhor: ­ Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. "Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada." LUCAS, 10; 38-42 PRÓLOGO O Alquimista pegou um livro que alguém na caravana havia trazido. O volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde. Enquanto folheava suas páginas, encontrou uma história sobre Narciso. O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os dias ia contemplar sua própria beleza num lago. Era tão fascinado por si mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso. Mas não era assim que Oscar Wilde acabava a história. Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Oréiades ­ deusas do bosque ­ e viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas salgadas. ­ Por que você chora? ­ perguntaram as Oréiades. ­ Choro por Narciso ­ disse o lago ­ Ah, não nos espanta que você chore por Narciso ­ continuaram elas. ­ Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza. ­ Mas Narciso era belo? ­ perguntou o lago. ­ Quem mais do que você poderia saber disso? ­ responderam, surpresas, as Oréiades. ­ Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias. O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse: ­ Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo. "Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida". "Que bela história", disse o Alquimista. O rapaz chamava-se Santiago. Estava começando a escurecer quando chegou com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha despencado há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia. Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela porta em ruínas, e então colocou algumas tábuas de modo que elas não pudessem fugir durante a noite. Não haviam lobos naquela região, mas certa vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada. Forrou o chão com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava começar a ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais confortáveis durante a noite. Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estrelas brilhavam através do teto semidestruído. "Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da semana passada, e outra vez acordara antes do final. Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e começou a acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que acordava, a maior parte dos animais também começava a despertar. Como se houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida à vida daquelas ovelhas que há dois anos percorriam com ele a terra, em busca de água e alimento. "Elas já se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horários", disse em voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser também o contrário: ele que havia se acostumado ao horário das ovelhas. Haviam certas ovelhas, porém, que demoravam um pouco mais para levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que ele falava. Por isso costumava às vezes ler para elas os trechos de livros que o haviam impressionado, ou falar da solidão e da alegria de um pastor no campo, ou comentar sobre as últimas novidades que via nas cidades por onde costumava passar. Nos últimos dois dias, porém, seu assunto tinha sido praticamente um só: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lá, no ano anterior. O comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificações. Um certo amigo tinha indicado a loja, e o pastor levou lá suas ovelhas. "Preciso vender alguma lã", disse para o comerciante. A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor esperasse até o entardecer. Ele sentou-se na calçada da loja e tirou um livro do alforje. ­ Não sabia que os pastores são capazes de ler livros ­ disse uma voz feminina ao seu lado. Era uma moça típica da região de Andaluzia, com seus cabelos negros escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores mouros. ­ É porque as ovelhas ensinam mais que os livros ­ respondeu o rapaz. Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O pastor contou dos campos de Andaluzia, das últimas novidades que viu nas cidades onde visitara. Estava contente por não precisar conversar sempre com as ovelhas. ­ Como aprendeu a ler? ­ perguntou a moça a certa altura. ­ Como todas as outras pessoas ­ respondeu o rapaz. ­ Na escola. ­ E, se sabe ler, então por que é apenas um pastor? O rapaz deu uma desculpa qualquer para não responder aquela pergunta. Ele tinha certeza de que a moça jamais entenderia. Continuou a contar suas histórias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de espanto e surpresa. À medida que o tempo foi passando, o rapaz começou a desejar que aquele dia não acabasse nunca, que o pai da moça ficasse ocupado por muito tempo e o mandasse esperar por três dias. Percebeu que estava sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca seriam iguais. Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano seguinte. Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo à mesma aldeia. Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina já tivesse esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lã. ­ Não tem importância ­ disse o rapaz para as suas ovelhas. ­ Eu também conheço outras meninas em outras cidades. Mas no fundo do seu coração, ele sabia que tinha importância. E que tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre conheciam uma cidade onde havia alguém capaz de fazer com que esquecessem a alegria de viajar solto pelo mundo. O dia começou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direção ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisão", pensou ele. "Talvez por isso fiquem sempre juntos de mim". A única necessidade que as ovelhas sentiam era de água e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o pôr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um só livro em suas curtas vidas, e não conhecessem a língua dos homens que contavam as novidades nas aldeias. Elas estavam contentes com água e alimento, e isto bastava. Em troca, ofereciam generosamente sua lã, sua companhia, e ­ de vez em quando ­ sua carne. "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas só iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado", pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus próprios instintos. Só porque as conduzo ao alimento e à comida". O rapaz começou a estranhar seus próprios pensamentos. Talvez a igreja, com aquele sicômoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma sensação de raiva contra suas companheiras, sempre tão fiéis. Bebeu um pouco de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o calor seria tão forte que não ia poder conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no verão. O calor durava até a noite, e durante todo este tempo ele tinha que ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso, sempre lembrava que por causa dele não havia sentido frio de manhã. "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava então ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco. O casaco tinha um motivo, e o rapaz também. Em dois anos pelas planícies de Andaluzia ele já sabia de cor todas as cidades da região, e esta era a grande razão de sua vida; viajar. Estava planejando explicar desta vez à menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado até os dezesseis anos num seminário. Seus pais queriam que ele fosse padre, e motivo de orgulho para uma simples família camponesa, que trabalhava apenas para comida e água, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia. Mas desde criança sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao visitar a família, havia tomado coragem e dito para seu pai que não queria ser padre. Queria viajar. ­ Homens de todo o mundo já passaram por esta aldeia, filho ­ disse o pai. ­ Vêm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. Vão até o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o presente. Têm cabelos louros ou pele escura, mas são iguais aos homens de nossa aldeia. ­ Mas não conheço os castelos das terras de onde eles vêm ­ retrucou o rapaz. ­ Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem que gostariam de viver para sempre aqui ­ continuou o pai. ­ Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram ­ disse o rapaz. ­ Porque eles nunca ficam por aqui. ­ Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro ­ disse mais uma vez o pai. ­ Entre nós, só os pastores viajam. ­ Então serei pastor. O pai não disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com três antigas moedas de ouro espanholas. ­ Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre seu rebanho e corra o mundo até aprender que nosso castelo é o mais importante, e nossas mulheres são as mais belas. E o abençoou. Nos olhos do pai ele leu também a vontade de correr o mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a tentou sepultar com água, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite. O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha já conhecido muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual àquela que o esperava em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, é que todo dia realizava o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia, podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar, teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser feliz. "Não sei como buscam Deus no seminário", pensou, enquanto olhava o sol que nascia. Sempre que possível, buscava um caminho diferente para andar. Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas vezes por ali. O mundo era grande e inesgotável, e se ele deixasse que as ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas interessantes. "O problema é que elas não se dão conta de que estão fazendo caminhos novos cada dia. Não percebem que os pastos mudaram, que as estações são diferentes ­ porque estão apenas ocupadas com água e comida." "Talvez seja assim com todos nós" ­ pensou o pastor. "Mesmo comigo, que não penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante". Olhou o céu, e pelos seus cálculos estaria antes do almoço em Tarifa. Lá poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a menina, e não queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mão. "É justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida interessante", refletiu enquanto olhava novamente o céu e apressava o passo. Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite. A velha conduziu o rapaz até um quarto no fundo da casa, separado da sala por uma cortina feita de tiras de plástico colorido. Lá dentro tinha uma mesa, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, e duas cadeiras. A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as duas mãos do rapaz e rezou baixo. Parecia uma reza cigana. O rapaz já havia encontrado muitos ciganos pelo caminho; eles viajavam e entretanto não cuidavam de ovelhas. As pessoas diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam também que eles tinham pacto com demônios, e que raptavam crianças para servirem de escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor antigo voltou enquanto a velha segurava suas mãos. "Mas existe a imagem do Sagrado Coração de Jesus", pensou ele, procurando ficar mais calmo. Não queria que sua mão começasse a tremer e a velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silêncio. ­ Que interessante ­ disse a velha, sem tirar os olhos da mão do rapaz. E voltou a ficar quieta. O rapaz estava ficando nervoso. Suas mãos começaram involuntariamente a tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mãos rapidamente. ­ Não vim aqui para ler as mãos ­ disse, já arrependido de ter entrado naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se embora sem saber de nada. Estava dando importância demais a um sonho repetido. ­ Você veio saber de sonhos ­ respondeu a velha. ­ E os sonhos são a linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, só você pode entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira. Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto é que faz a profissão de pastor mais excitante. ­ Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas ­ disse. ­ Sonhei que estava num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma criança, e começava a brincar com os animais. Não gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam com medo de estranhos. Mas as crianças sempre conseguem mexer com os animais sem que eles se assustem. Não sei porquê. Não sei como os animais sabem a idade dos seres humanos. ­ Volte para seu sonho ­ disse a velha. ­ Tenho uma panela no fogo. Além disso você tem pouco dinheiro e não pode tomar todo o meu tempo. ­ A criança continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo ­ continuou o rapaz, um pouco constrangido. ­ E de repente, me pegava pelas mãos e me levava até as Pirâmides do Egito. O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as Pirâmides do Egito. Mas a velha continuou quieta. ­ Então, nas Pirâmides do Egito, ­ ele falou as três últimas palavras lentamente, para que a velha pudesse entender bem ­ a criança me dizia: "se você vier até aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes. A velha continuou em silêncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as mãos do rapaz e estudá-las atentamente. ­ Não vou lhe cobrar nada agora ­ disse a velha. Mas quero um décimo do tesouro, se você encontrá-lo. O rapaz riu. De felicidade. Então iria economizar o pouco dinheiro que tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha devia ser mesmo uma cigana ­ os ciganos são burros. ­ Então interprete o sonho ­ pediu o rapaz. ­ Antes jure. Jure que você vai me dar a décima parte do seu tesouro em troca do que eu lhe disser. O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando para a imagem do Sagrado Coração de Jesus. ­ É um sonho da Linguagem do Mundo ­ disse ela. ­ Posso interpretá-lo, e é uma interpretação muito difícil. Por isso acho que mereço minha parte no seu achado. "E a interpretação é esta: você deve ir até as Pirâmides do Egito. Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma criança que lhe mostrou, é porque existem. Lá você encontrará um tesouro que lhe fará rico". O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. Não precisava ter procurado a velha para isto. Finalmente lembrou-se de que não estava pagando nada. ­ Para isto eu não precisava perder meu tempo ­ disse. ­ Por isso lhe falei que seu sonho era difícil. As coisas simples são as mais extraordinárias, e só os sábios conseguem vê-las. Já que não sou uma sábia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mãos. ­ E como eu vou chegar até o Egito? ­ Eu só interpreto sonhos. Não sei transformá-los em realidade. Por isso tenho que viver do que minhas filhas me dão. ­ E se eu não chegar até o Egito? ­ Eu fico sem pagamento. Não será a primeira vez. E a velha não disse mais nada. Pediu para que o rapaz saísse, pois já tinha perdido muito tempo com ele. O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos. Lembrou-se de que tinha várias providências a tomar: foi ao armazém arranjar alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num banco da praça para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia quente, e o vinho, por um destes mistérios insondáveis, conseguia resfriar um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estábulo de um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas ­ e por isso gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e não precisa ficar com eles dia após dia. Quando a gente vê sempre as mesmas pessoas ­ e isto acontecia no seminário ­ terminamos fazendo com que elas passem a fazer parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam também a querer modificar nossas vidas. Se a gente não for como elas esperam ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a noção exata de como devemos viver nossa vida. E nunca têm noção de como devem viver as suas próprias vidas. Como a mulher dos sonhos, que não sabia transformá-los em realidade. Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas ovelhas em direção ao campo. Daqui a três dias iria estar com a filha do comerciante. Começou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira página. Além disso, o nome dos personagens eram complicadíssimos. Se algum dia escrevesse um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para que os leitores não tivessem que ficar decorando nomes. Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, ­ e era boa, porque falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensação de frio debaixo daquele imenso sol ­ um velho sentou-se ao seu lado e começou a puxar conversa. ­ O que eles estão fazendo? ­ perguntou o velho, apontando para as pessoas da praça. ­ Trabalhando ­ respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era capaz de fazer coisas interessantes. Já havia imaginado esta cena uma porção de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele começava a lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trás para frente. Também tentava se lembrar de algumas boas histórias para contar a ela enquanto tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferença, porque não sabia ler livros. O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o velho ficasse quieto. Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Então estendeu o livro para o velho, por duas razões: a primeira é que não sabia pronunciar o título. E a segunda era que, se o velho não soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco para não sentir-se humilhado. ­ Humm... ­ disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se fosse um objeto estranho. ­ É um livro importante, mas é muito chato. O rapaz ficou surpreso. O velho também lia, e já lera aquele livro. E se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro. ­ É um livro que fala o que quase todos os livros falam ­ continuou o velho. ­ Da incapacidade que as pessoas têm de escolher seu próprio destino. E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo. ­ Qual é a maior mentira do mundo? ­ indagou surpreso o rapaz. ­ É esta: em determinado momento de nossa existência, perdemos o controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta é a maior mentira do mundo. ­ Comigo não aconteceu isto ­ disse o rapaz. ­ Queriam que eu fosse padre, e eu resolvi ser pastor. ­ Assim é melhor ­ disse o velho. ­ Porque você gosta de viajar. "Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto, folheava o livro grosso, sem a menor intenção de devolvê-lo. O rapaz notou que ele vestia uma roupa estranha; parecia um árabe, o que não era raro naquela região. A África ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era só cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam árabes na cidade, fazendo compras e rezando orações estranhas várias vezes por dia. ­ De onde é o senhor? ­ perguntou. ­ De muitas partes. ­ Ninguém pode ser de muitas partes ­ o rapaz falou. ­ Eu sou um pastor e estou em muitas partes, mas sou de um único lugar, de uma cidade perto de um castelo antigo. Ali foi onde nasci. ­ Então podemos dizer que eu nasci em Salém. ­ O rapaz não sabia onde era Salém, mas não quis perguntar para não sentir- se humilhado com a própria ignorância. Ficou mais algum tempo olhando a praça. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas. ­ Como está Salém? ­ perguntou o rapaz, procurando alguma pista. ­ Como sempre esteve. Ainda não era uma pista. Mas sabia que Salém não estava em Andaluzia. Senão, ele já a teria conhecido. ­ E o que você faz em Salém? ­ insistiu. ­ O que faço em Salém? ­ o velho pela primeira vez deu uma gostosa gargalhada. ­ Ora, eu sou o Rei de Salém! As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. Às vezes é melhor estar com as ovelhas, que são caladas, e apenas procuram alimento e água. Ou é melhor estar com os livros, que contam estórias incríveis sempre nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa. ­ Meu nome é Melquisedec ­ disse o velho. ­ Quantas ovelhas você tem? ­ O suficiente ­ respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber demais sobre sua vida. ­ Então estamos diante de um problema. Não posso ajudá-lo enquanto você achar que tem ovelhas suficientes. O rapaz se irritou. Não estava pedindo ajuda. O velho é que tinha pedido vinho, conversa, e livro. ­ Me devolva o livro ­ disse. ­ Tenho que ir buscar minhas ovelhas e seguir adiante. ­ Me dê um décimo de suas ovelhas ­ disse o velho. ­ E eu lhe ensino como chegar até o tesouro escondido. O rapaz tornou então a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou claro. A velha não tinha cobrado nada, mas o velho ­ que era talvez seu marido ­ ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma informação que não existia. O velho devia ser cigano também. Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porém, o velho abaixou-se, pegou um graveto, e começou a escrever na areia da praça. Quando ele se abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que quase cegou o rapaz. Mas num movimento rápido demais para alguém de sua idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo. Na areia da praça principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu pai e de sua mãe. Leu a história de sua vida até aquele momento, as brincadeiras de infância, as noites frias do seminário. Leu o nome da filha do comerciante, que não sabia. Leu coisas que jamais contara para alguém, como o dia em que roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitária experiência sexual. "Sou o Rei de Salém", dissera o velho. ­ Por que um rei conversa com um pastor? ­ perguntou o rapaz, envergonhado e admiradíssimo. ­ Existem várias razões. Mas vamos dizer que a mais importante é que você tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal. O rapaz não sabia o que era Lenda Pessoal. ­ É aquilo que você sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua Lenda Pessoal. "Nesta altura da vida, tudo é claro, tudo é possível, e elas não têm medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas vidas. Entretanto, à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal. O que o velho estava dizendo não fazia muito sentido para o rapaz. Mas ele queria saber o que eram "forças misteriosas"; a filha do comerciante ia ficar boquiaberta com isto. ­ São as forças que parecem ruins, mas na verdade estão ensinando a você como realizar sua Lenda Pessoal. Estão preparando seu espírito e sua vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você quem for ou o que faça, quando quer com vontade alguma coisa, é porque este desejo nasceu na alma do Universo. É sua missão na Terra. ­ Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante de tecidos? ­ Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo é alimentada pela felicidade das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciúme. Cumprir sua Lenda Pessoal é a única obrigação dos homens. Tudo é uma coisa só. "E quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo". Durante algum tempo ficaram em silêncio, olhando a praça e as pessoas. Foi o velho quem falou primeiro. ­ Por que você cuida de ovelhas? ­ Porque gosto de viajar. Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num canto da praça. ­ Aquele pipoqueiro também sempre desejou viajar, quando criança. Mas preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos. Quando estiver velho, vai passar um mês na África. Jamais entendeu que a gente sempre tem condições para fazer o que sonha. ­ Devia ter escolhido ser um pastor ­ pensou em voz alta o rapaz. ­ Ele pensou nisto ­ disse o velho. ­ Mas os pipoqueiros são mais importantes que os pastores. Os pipoqueiros têm uma casa, enquanto os pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que com pastores. O rapaz sentiu uma pontada no coração, pensando na filha do comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro. ­ Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal. O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma página. O rapaz esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia interrompido. ­ Por que você fala estas coisas comigo? ­ Porque você tenta viver sua Lenda Pessoal. E está a ponto de desistir dela. ­ E você aparece sempre nestas horas? ­ Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. Às vezes apareço sob a forma de uma boa saída, uma boa idéia. Outras vezes, num momento crucial, faço as coisas ficarem mais fáceis. E assim por diante; mas a maior parte das pessoas não nota isto. O velho contou que na semana passada ele tinha sido forçado a aparecer para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o garimpeiro pensou em desistir, e só faltava uma pedra ­ apenas UMA PEDRA ­ para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se numa pedra que rolou sobre o pé do garimpeiro. Este, com a raiva e frustração dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com tanta força que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais bela esmeralda do mundo. ­ As pessoas aprendem muito cedo sua razão de viver ­ disse o velho com uma certa amargura nos olhos. ­ Talvez seja por isso que elas desistem tão cedo também. Mas assim é o mundo. Então o rapaz se lembrou que a conversa havia começado com o tesouro escondido. ­ Os tesouros são levantados da terra pela torrente de água, e enterrados por estas mesmas enchentes ­ disse o velho. ­ Se você quiser saber sobre seu tesouro, terá que me ceder um décimo de suas ovelhas. ­ E não serve um décimo do tesouro? O velho ficou decepcionado. ­ Se você sair prometendo o que ainda não tem, vai perder sua vontade de consegui-lo. O rapaz então contou que tinha prometido um décimo à cigana. ­ Os ciganos são espertos ­ suspirou o velho. ­ De qualquer maneira é bom você aprender que tudo na vida tem um preço. É isto que os Guerreiros da Luz tentam ensinar. O velho devolveu o livro ao rapaz. ­ Amanhã, nesta mesma hora, você me traz um décimo de suas ovelhas. Eu lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde. E sumiu numa das esquinas da praça. O rapaz tentou ler o livro, mas não conseguiu concentrar-se mais. Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi até o pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou não contar a ele o que o velho dissera. "Às vezes é melhor deixar as coisas como estão", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia ficar três dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua carrocinha. Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. Começou a andar sem rumo pela cidade, e foi até o porto. Havia um pequeno prédio, e no prédio havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na África. ­ Quer alguma coisa? ­ perguntou o sujeito no guichê. ­ Talvez amanhã ­ disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma ovelha podia chegar até o outro lado do estreito. Era uma idéia que o apavorava. ­ Mais um sonhador ­ disse o sujeito do guichê ao seu assistente, enquanto o rapaz se afastava. ­ Não tem dinheiro para viajar. Quando estava no guichê, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grávidas, proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de Andaluzia. Conhecia o preço justo de comprar e vender cada um dos seus animais. Resolveu voltar até o estábulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A cidade também tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e sentar-se numa de suas muradas. Lá de cima ele podia ver a África. Alguém certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles é que tinham trazido os ciganos. De lá podia ver também quase toda a cidade, inclusive a praça onde havia